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MARCELO COELHO
O "princípio esperança" e as utopias à moda da casa
Mudar o mundo? No,
thanks. Nunca mais. Sem
chance. Nem pensar.
Frases curtas, de duas palavras,
sem nenhuma explicação suplementar, parecem suficientes para
exprimir o estado de espírito que
predomina no Brasil -ou em
qualquer outro país- depois de
tantas utopias entrarem em descrédito.
Pode ser interessante, para
quem quiser reanimar-se (ou desistir de vez), dar uma olhada no
livro clássico de Ernst Bloch, "O
Princípio Esperança", cujo primeiro volume foi finalmente publicado no Brasil, pela Uerj, em
parceria com a editora Contraponto.
Amigo desde a juventude de
Georg Lukács (com quem mais
tarde polemizaria apaixonadamente) e pensador com muitos
pontos de contato com a Escola de
Frankfurt (com Walter Benjamin
em particular), Ernst Bloch (1885-1977) é certamente o mais romântico, o mais arrebatado e o menos
"científico" dos marxistas.
"O Princípio Esperança" apresenta-se como um vasto tratado
sobre a utopia, o sonho, o impulso
de transformação. Publicado na
Alemanha Oriental entre os anos
de 1954 e 1959, ou seja, logo após a
morte de Stálin e pouco antes da
construção do Muro de Berlim, o
livro nada tinha que agradasse
aos burocratas do regime. Bloch
acabou se mudando para a República Federal da Alemanha, onde
sua obra malcomportada, vibrante e feérica haveria de inspirar os movimentos de contestação
dos anos 60.
O gênio da lâmpada maravilhosa; a loja de móveis, com suas
promessas de felicidade doméstica; Ulisses, Jasão, Colombo e
quem quer que se lance em busca
de um novo mundo. O circo, o
parque de diversões, o teatro; as
perspectivas azuladas da pintura
renascentista; os prazeres do domingo num quadro de Seurat. As
obras de Freud, Lênin, Mozart,
Campanella. O Eldorado, a catedral gótica, as coleções de selos:
tudo entra, tudo é admissível, tudo (quase tudo) é bem-vindo no
gigantesco panorama construído
por Bloch.
Trata-se de um daqueles livros
que, assumindo a aparência de
um tratado sistemático, deixam-se na verdade implodir pelo próprio conteúdo, caótico, agonístico, libertário. Cada página de "O
Princípio Esperança" fervilha de
iluminações, enquanto sua estrutura conceitual vai sendo exposta
com a lentidão de uma jamanta
andando em círculos.
Dois conceitos aparecem a todo
momento no livro e são, como se
diz, "prenhes de significado" para
a filosofia de Bloch: o "sonho
diurno" e o "ainda-não-consciente". Polemizando com Freud, e
mais ainda com Jung, Bloch observa que "os seres humanos de
forma alguma sonham apenas à
noite. Também o dia possui bordas crepusculares, também ali os
desejos se saciam". Acontece que,
diferentemente do sonho noturno, no sonho diurno podemos
conduzir nossa fantasia; podemos, diz Bloch, "delirar, mas também ponderar e planejar".
O inconsciente da psicanálise,
por sua vez, funciona sempre como um repositório de lembranças
passadas, como o subterrâneo, o
subsolo de nossa morada mental.
O "ainda-não-consciente" de
Bloch corresponde ao futuro, é o
"inconsciente do outro lado, do
alvorecer para a frente". Trata-se
do "local psíquico do nascimento
do novo". O conceito não é dos
mais inequívocos, mas ganha força quando Bloch o traduz numa
metáfora; "o que o sujeito aqui fareja não é o bafio de porão, mas o
ar da manhã".
Seja qual for a solidez dos argumentos de Bloch, é irresistível a
sua extravagância literária, a beleza "expressionista" de algumas
passagens. Mesmo antes de se dar
conta dos próprios desejos, diz
Bloch, todo jovem sonhador gosta
de contemplar o horizonte; a razão disso é que as nuvens nada
mais são do que "os traços fabulares da natureza".
O encanto do balé clássico, escreve Bloch num curioso excurso
sobre a dança, está no que existe
ali de "sofrimento elegante e júbilo frio". Nada mais distante das
exaltações do próprio autor, cujo
otimismo leva até mesmo a elogiar os componentes utópicos da
paranóia. Esta é capaz "de novas
composições, transformações do
mundo, projetos que avançam,
em suma, corujas de fogo de uma
Minerva louca, mas cheia de vontade de fazer luzir a aurora".
Para leitores que conheciam o
terror stalinista de perto, essas
passagens talvez tivessem conotações sinistras. Nada mais "déjà
vu", aliás, que as observações esparsas de Bloch contra o "decadente" modo de vida americano,
em oposição às homenagens, obviamente contrafeitas, que o autor ainda dirige ao socialismo soviético. Mas o desastre dessas utopias de Estado, sistemáticas, paranóicas e assassinas, paradoxalmente torna mais atual o livro de
Bloch: seu livro põe em relevo
uma esperança estilhaçada em
mil situações diferentes, sem a necessidade de que se unifiquem
numa ordem única.
Para Bloch, nenhum elogio dos
"fatos", da "realidade tal como
ela é", pode ser levado às últimas
conseqüências; isto seria o equivalente à fixidez da morte. O real,
porque está incompleto, exige
nossa participação e nossos desejos. Por certo, podemos dizer que
esse "princípio esperança" tem
cada vez menos uma tradução
política e institucional em sentido
estrito.
O próprio Bloch, aliás, encontra-o em toda parte. Logo no início, ele cita o alvoroço das crianças dentro de casa, quando tocam
a campainha. Já é a necessidade
do novo, do diferente, de tudo
aquilo que o futuro emite em nossa direção.
Haja otimismo. Na Alemanha
Oriental, um toque de campainha poderia bem ser a visita da
polícia política à procura de papai ou de mamãe. Aqui no Brasil,
país de utopias menos sérias e de
derrocadas sem tragédia, o toque
do interfone não possui tais dimensões. Em geral, significa apenas a chegada do entregador de
pizza.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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