São Paulo, quarta-feira, 07 de setembro de 2005

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MARCELO COELHO

O "princípio esperança" e as utopias à moda da casa

Mudar o mundo? No, thanks. Nunca mais. Sem chance. Nem pensar.
Frases curtas, de duas palavras, sem nenhuma explicação suplementar, parecem suficientes para exprimir o estado de espírito que predomina no Brasil -ou em qualquer outro país- depois de tantas utopias entrarem em descrédito.
Pode ser interessante, para quem quiser reanimar-se (ou desistir de vez), dar uma olhada no livro clássico de Ernst Bloch, "O Princípio Esperança", cujo primeiro volume foi finalmente publicado no Brasil, pela Uerj, em parceria com a editora Contraponto.
Amigo desde a juventude de Georg Lukács (com quem mais tarde polemizaria apaixonadamente) e pensador com muitos pontos de contato com a Escola de Frankfurt (com Walter Benjamin em particular), Ernst Bloch (1885-1977) é certamente o mais romântico, o mais arrebatado e o menos "científico" dos marxistas.
"O Princípio Esperança" apresenta-se como um vasto tratado sobre a utopia, o sonho, o impulso de transformação. Publicado na Alemanha Oriental entre os anos de 1954 e 1959, ou seja, logo após a morte de Stálin e pouco antes da construção do Muro de Berlim, o livro nada tinha que agradasse aos burocratas do regime. Bloch acabou se mudando para a República Federal da Alemanha, onde sua obra malcomportada, vibrante e feérica haveria de inspirar os movimentos de contestação dos anos 60.
O gênio da lâmpada maravilhosa; a loja de móveis, com suas promessas de felicidade doméstica; Ulisses, Jasão, Colombo e quem quer que se lance em busca de um novo mundo. O circo, o parque de diversões, o teatro; as perspectivas azuladas da pintura renascentista; os prazeres do domingo num quadro de Seurat. As obras de Freud, Lênin, Mozart, Campanella. O Eldorado, a catedral gótica, as coleções de selos: tudo entra, tudo é admissível, tudo (quase tudo) é bem-vindo no gigantesco panorama construído por Bloch.
Trata-se de um daqueles livros que, assumindo a aparência de um tratado sistemático, deixam-se na verdade implodir pelo próprio conteúdo, caótico, agonístico, libertário. Cada página de "O Princípio Esperança" fervilha de iluminações, enquanto sua estrutura conceitual vai sendo exposta com a lentidão de uma jamanta andando em círculos.
Dois conceitos aparecem a todo momento no livro e são, como se diz, "prenhes de significado" para a filosofia de Bloch: o "sonho diurno" e o "ainda-não-consciente". Polemizando com Freud, e mais ainda com Jung, Bloch observa que "os seres humanos de forma alguma sonham apenas à noite. Também o dia possui bordas crepusculares, também ali os desejos se saciam". Acontece que, diferentemente do sonho noturno, no sonho diurno podemos conduzir nossa fantasia; podemos, diz Bloch, "delirar, mas também ponderar e planejar".
O inconsciente da psicanálise, por sua vez, funciona sempre como um repositório de lembranças passadas, como o subterrâneo, o subsolo de nossa morada mental. O "ainda-não-consciente" de Bloch corresponde ao futuro, é o "inconsciente do outro lado, do alvorecer para a frente". Trata-se do "local psíquico do nascimento do novo". O conceito não é dos mais inequívocos, mas ganha força quando Bloch o traduz numa metáfora; "o que o sujeito aqui fareja não é o bafio de porão, mas o ar da manhã".
Seja qual for a solidez dos argumentos de Bloch, é irresistível a sua extravagância literária, a beleza "expressionista" de algumas passagens. Mesmo antes de se dar conta dos próprios desejos, diz Bloch, todo jovem sonhador gosta de contemplar o horizonte; a razão disso é que as nuvens nada mais são do que "os traços fabulares da natureza".
O encanto do balé clássico, escreve Bloch num curioso excurso sobre a dança, está no que existe ali de "sofrimento elegante e júbilo frio". Nada mais distante das exaltações do próprio autor, cujo otimismo leva até mesmo a elogiar os componentes utópicos da paranóia. Esta é capaz "de novas composições, transformações do mundo, projetos que avançam, em suma, corujas de fogo de uma Minerva louca, mas cheia de vontade de fazer luzir a aurora".
Para leitores que conheciam o terror stalinista de perto, essas passagens talvez tivessem conotações sinistras. Nada mais "déjà vu", aliás, que as observações esparsas de Bloch contra o "decadente" modo de vida americano, em oposição às homenagens, obviamente contrafeitas, que o autor ainda dirige ao socialismo soviético. Mas o desastre dessas utopias de Estado, sistemáticas, paranóicas e assassinas, paradoxalmente torna mais atual o livro de Bloch: seu livro põe em relevo uma esperança estilhaçada em mil situações diferentes, sem a necessidade de que se unifiquem numa ordem única.
Para Bloch, nenhum elogio dos "fatos", da "realidade tal como ela é", pode ser levado às últimas conseqüências; isto seria o equivalente à fixidez da morte. O real, porque está incompleto, exige nossa participação e nossos desejos. Por certo, podemos dizer que esse "princípio esperança" tem cada vez menos uma tradução política e institucional em sentido estrito.
O próprio Bloch, aliás, encontra-o em toda parte. Logo no início, ele cita o alvoroço das crianças dentro de casa, quando tocam a campainha. Já é a necessidade do novo, do diferente, de tudo aquilo que o futuro emite em nossa direção.
Haja otimismo. Na Alemanha Oriental, um toque de campainha poderia bem ser a visita da polícia política à procura de papai ou de mamãe. Aqui no Brasil, país de utopias menos sérias e de derrocadas sem tragédia, o toque do interfone não possui tais dimensões. Em geral, significa apenas a chegada do entregador de pizza.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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