São Paulo, Terça-feira, 07 de Setembro de 1999
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ARNALDO JABOR
Morte de Kubrick foi a cena final de seu filme

Stanley Kubrick tentou alcançar o aparelho de oxigênio perto de seu leito, mas as coisas ficaram longínquas, como se uma lente grande angular de 9mm, um "olho-de-peixe", tivesse surgido entre ele e o mundo. Com muita dor, Kubrick pensou em gritar, mas sua voz era inaudível, enquanto seu coração batia forte. O som da cena estava mal "mixado", priorizando as batidas desarvoradas em seu peito sobre o grito que saía abafado.
O quarto começou a rodar, num lento "travelling" circular, o que fez a luz azulada da janela ganhar um halo desfocado em seus olhos, como um jorro excessivo de refletores HMI na lente. Kubrick tentou se concentrar na cena -talvez conseguisse controlar o enquadramento- pensou fortemente no filme inacabado nas mãos dos brutos executivos da Warner, se ergueu no leito e, quase sentado, ainda pôde ver, por segundos, a última imagem no espelho do quarto: seu rosto e o mundo sumindo num lento "fade to black", com uma voz cantando: "Baby, you did a bad, bad thing".
Kubrick acabou antes de seu filme. Este é um drama de todos os cineastas, que pensam: "Será este o meu último "take'?" A vida de diretor de cinema não é dividida em dias nem em meses: são filmes, únicos momentos em que o mundo entra em foco, no negativo, ao contrário dos homens "normais", que acordam e dormem dentro da realidade palpável.
Kubrick acabou antes. "De Olhos Bem Fechados" (Eyes Wide Shut) é mais sobre a morte (sua?) do que sobre amor e sexo. Assim como ele morreu sem ritmo, sem preparação dramática, como um corpo que cai, num corte súbito, o filme também é sobre uma grande crise, creio que mais dele que das personagens. O filme é a crise sexual de Kubrick. No filme nada se consuma: só a morte de personagens. Não há momentos de alegria erótica, ninguém trepa, a não ser nos sonhos em preto-e-branco de Nicole Kidman. O filme é um coito interrompido.
Por que Kubrick demorou tanto tempo (mais de dois anos) para realizá-lo? Trata-se de uma produção simples. Parece-me que Kubrick ficou travado por uma grande inibição, como diria Freud, o amigo do novelista Schnitzler. Kubrick não conseguiu aceitar a sexualidade livre como parte da vida, digamos, normal. Ele nos mostra a sexualidade como "unheimlich" (estranha, sinistra), assim como Schnitzler, para quem o inconsciente era o lugar do fantástico e criminal; ao contrário de Freud, que o priorizava como "topos" do chiste e do ato falho. A genial descoberta de Freud é o superficial, não o "profundo".
Eu já fiz três filmes de amor e, em verdade, vos digo: na hora H, o único material com que você conta é a própria experiência. Todo filme de amor é sobre você mesmo, todo filme de amor é particularista, singular, e daí sua grandeza. Kubrick quis fazer um filme de amor como uma "grande narrativa", tentando descobrir sentido ali, tentando parar a água do rio, como se o amor-sexo fosse um tema "objetivo". O amor não é tema, é forma. O tema é você mesmo. Em "De Olhos Bem Fechados" fica patente a inexperiência de Kubrick, fóbico, recluso diante do sexo.
Casado com uma mesma mulher a vida toda, "family man", ele era um Tom Cruise que tentou descobrir tardiamente o "segredo" daquele mistério. E, mesmo com a elegância e o talento de grande artista, quebrou a cara. Para ele, como para qualquer bom marido como o Tom Cruise, a "vida sexual real" é um filme de terror. A liberdade do homem casado é vivida como um "film noir" perigoso diante da naturalidade rasa dos perversos.
Tom Cruise e Kubrick são otários na noite, diante do "mal" do Village (sic.). A cena principal do filme, que deveria ser a grande bacanal, parece um seminário de "Guerra das Estrelas", com Darth Vaders castradores, mascarados numa missa negra e culposa, um grande bode funeral. (E mesmo assim a censura da Warner botou figurinhas na frente das trepadas góticas, nos EUA. Aqui, graças a Deus, nós, bárbaros e amorais, pudemos vê-las sem cortes, única vantagem de sermos periféricos).
Assim como o casamento para Tom Cruise, o cinema para Kubrick era um mecanismo de defesa. Calma... Calma... Ele era um grande cineasta, mas em seus filmes há uma busca de respostas fechadas, há em seu cinema uma ponta de esquematismo americano, buscando uma "complexidade européia", sem consegui-la inteiramente.
Ele vai além dos "happy ends" e das "redenções", pois seus filmes são quase sempre sobre fracassos. Desde as notas de dólar voando no aeroporto do "Grande Golpe", passando pela dor do insatisfatório "Lolita", pelo martírio de "Spartacus", pelo fracasso do "O Iluminado" (que amo justamente por sua "parcialidade" episódica), até o fim do mundo ao som de um "fox" em "Dr. Fantástico".
Mesmo "2001", este grande clássico, peca por uma ingenuidade holística e tecnológica. Sem dúvida, Kubrick é do balacobaco. Sua grandeza vem mais de um perfeccionismo louco, e de um fundo desejo de arte, para além de qualquer "recado". Tanto é seu desespero por atingir um alvo de sentido, que ele gera a aura dos grandes poemas.
Kubrick nunca amou ninguém, só amou o cinema. E, neste filme tardio, tenta reencontrar sua sexualidade "perdida", na crença de que alguém a domina. É emocionante ver um autor tentando esta impossibilidade.
Kubrick era nosso último autor, já que Bergman não filma mais e Godard fica jogando tênis com menininhas. Por isso, fui faminto ver o filme em busca de respostas para este fim de século. E, claro, nada aplacou minha ingênua esperança. O filme é falhado como a vida e, de sua platitude, surge um chão ótimo para interpretoses pós-utópicas. Infelizmente, continuaremos entregues à indústria de abacaxis e de diretores imbecis.
Eis meu veredicto: o filme é ruim, mas é bom por sua fracassada tentativa. Pier Paolo Pasolini dizia que "a vida é um filme que só se monta quando a gente morre". A cena final de "De Olhos Bem Fechados" foi a morte de Stanley Kubrick.


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