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CARLOS HEITOR CONY
Das pompas fúnebres e da honra dos homens
Deus é testemunha -gosto
de invocar o Todo Poderoso,
no qual às vezes creio, às vezes
não, de acordo com o tempo, o
modo e a circunstância. Sobretudo quando estou mentindo, o que
não é o caso, principalmente agora, quando a verdade não vale e,
se valesse, dava na mesma. A invocação é para afirmar que não
aprecio solenidades, sejam quais
forem. Houve época em que havia
solenidade em tudo, principalmente nos enterros, quando Estado e Igreja não haviam se separado pelos ideais e costumes republicanos.
Uma das melhores cenas de
"Dom Casmurro" é quando Bentinho, ainda infante, está com o
agregado José Dias num ônibus
(daquela época) e há a notícia de
que vai sair o Santíssimo da igreja de Santo Antônio dos Pobres
para atender a um moribundo.
José Dias ordena ao recebedor
que pare o veículo, ele e Bentinho
saltam e vão à sacristia habilitar-se ao privilégio de segurar uma
das varas do pálio que cobriria "o
vigário e o sacramento". Surge de
repente o Pádua, "esbaforido",
nada menos do que o pai de Capitu, disputando a mesma honra.
Há uma espécie de empurra-empurra entre os três. Vendo-se
perdido, José Dias reclama o direito para Bentinho, um futuro
seminarista. Pádua conforma-se
em pegar uma das tochas, ficando
"pálido" como as próprias tochas.
E vão os três pelas ruas levando a
hóstia sagrada para o cristão que
morria, obrigando os transeuntes
a se ajoelharem -era um pretexto para imaginar que todos se
ajoelhavam por causa deles.
Outros tempos, diria o próprio
Machado de Assis. Havia solenidade nos enterros. Quando Rio
Branco morreu, o Rio branco, negro e mestiço parou e se ajoelhou
na avenida homônima para ver
passar o coche suntuoso do barão,
em cuja cadeira às vezes me sento, na Academia, embora a minha cadeira seja de outro.
Na recente obra de Ronaldo
Costa Couto sobre o industrial
Francisco Matarazzo, há uma foto em página dupla do enterro do
conde, coisa impressionante. São
Paulo, que não pode parar, parou
para homenagear o falecido,
pompas e circunstâncias que jamais se repetiram.
Havia enterros de primeira, de
segunda e de terceira classes, outros sem classe alguma, destinados aos indigentes. Economizava-se em vida para garantir depois
de morto um enterro ao menos de
segunda classe, cobria-se de opróbrio posterior e eterno a família
que se contentava com um de terceira. Ainda peguei este tempo e,
fosse qual fosse a classe, pelo trajeto os homens se descobriam e as
mulheres se persignavam, nos botequins todos se levantavam e
iam para as calçadas honrar o
morto e verificar como se portavam os vivos.
Não sou de freqüentar enterros,
costumo cortar relações com os
amigos que morrem, considero-me insultado por eles: radicalizo,
corto as relações. Apesar disso, há
alguns que não posso evitar. Num
deles, durante o velório, encontrei
um clima de convescote, de noite
de autógrafos e vernissage, todos
falavam alto, riam, contavam
anedotas, dava-se em cima das
mulheres acompanhadas ou não.
Findo o velório, nem se disputava a honra de segurar as alças do
caixão, deixavam a missão para
os funcionários da capela. Mas já
houve tempo em que era de proveito segurar as alças de um caixão famoso. Conheci um personagem que levava sempre no bolso uma alça avulsa -em havendo oportunidade, ia ele com sua
alça suplementar, aproximava-se
do caixão, grudava-lhe a alça e
saía nas fotos. Um caixão tinha, e
creio que ainda tem, em sua origem e finalidade, apenas seis alças. Com a do sujeito, ficava com
sete.
Hoje não há préstito nem coche.
Surge uma Kombi que nem é preta, combalida, caindo aos pedaços. Empurram o falecido para
dentro, a Kombi mistura-se ao
tráfego de todos os dias e horas,
pára nos sinais vermelhos que
nem os tanques de combate paravam em dias de golpe de Estado
aqui no Rio.
Há em São Paulo, aqui já citado, um cemitério da Consolação.
No Rio, os cemitérios são desconsolados, sujos, de péssimo gosto e
nenhuma dignidade. Os coveiros
não escondem a desafiadora má
vontade, olham os acompanhantes com certa voracidade, querendo gorjetas ou enterrar a todos
para aproveitar a oportunidade,
livrando-se de futuro trabalho
para eles e queimando etapas para aqueles que, mais cedo ou mais
tarde, também ali ficarão na problemática espera da ressurreição
dos mortos.
Finalmente os vivos consideram-se salvos, missão cumprida,
onde quer que esteja, o sepultado
constata os que foram realmente
seus amigos, surpreende-se com a
presença de uns e com a ausência
de outros -que são a maioria.
Santo Agostinho dizia que não
se deve temer a morte, mas o seu
espetáculo. Marco Antônio aproveitou o funeral de César para o
seu discurso, dizendo que os inimigos do imperador eram todos
homens honrados, "all honourable men". Nesta crônica sombria,
falei de um barão e de um conde,
falei de um imperador romano,
citei Santo Agostinho, lembrei
Dom Casmurro e o Pádua, pai de
Capitu e seu futuro sogro. Falei
também de golpes de Estado e de
golpes do destino que não podemos evitar. E invoquei Deus, testemunha da miséria humana.
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