São Paulo, sábado, 07 de novembro de 2009

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"Luis Buñuel é maior do que sua obra"

Jean-Claude Carrière afirma que "Meu Último Suspiro" é "livro-retrato" e diz que Buñuel é "mais importante que Picasso"

"Não fiz um livro sobre os filmes, mas sobre Buñuel. Truffaut queria saber por que eu tinha mais interesse no homem do que na obra"


DA REPORTAGEM LOCAL

Leia entrevista com Jean-Claude Carrière, que comenta a edição de "Meu Último Suspiro", que narra episódios na vida do cineasta Luis Buñuel, como a estreia de "Um Cão Andaluz", a passagem por Hollywood e o exílio no México.
O francês está escrevendo um roteiro com o escritor Atiq Rahimi e acaba de lançar "N'Espérez pas Vous Débarrasser des Livres" (não ache que os livros serão descartados, ed. Grasset), entrevistas conjuntas com Umberto Eco. (MARCOS STRECKER)

FOLHA - "Meu Último Suspiro" é uma obra de Luis Buñuel ou de Jean-Claude Carrière?
JEAN-CLAUDE CARRIÈRE
- Nós escrevemos juntos, como se fosse um roteiro. Na época, tínhamos escrito um roteiro que não pôde ser filmado ["Agon"], pois ele já estava com 80 anos, muito cansado. Como convivi 20 anos com ele, tinha tomado notas sobre sua vida. Ele me contava muitas coisas durante as refeições e os aperitivos. Fiz os cálculos, almoçamos juntos mais de 2.000 vezes. Muitos casais não podem dizer isso... Como conhecia sua vida, propus fazer o livro. Ele disse que não queria, e que todos estavam escrevendo memórias... Para convencê-lo, escrevi eu mesmo o capítulo "Os Prazeres desse Mundo". Narrei em primeira pessoa dizendo "eu, Buñuel....". Ele disse: tenho a impressão que eu mesmo escrevi. O livro foi escrito em 1980, ele morreu em 1983. Teve a oportunidade de ver a edição espanhola e gostou.

FOLHA - O livro não é uma biografia no sentido comum. Como vocês chegaram a esse formato?
CARRIÈRE
- Eu o convenci a fazer não um livro de memórias, mas um livro-retrato, que se pareceria com ele. Comecei com "Os Prazeres desse Mundo" pois seria um capítulo curto, não teria a cara de um livro de memórias. Os que conheceram Buñuel dizem que o livro se parece muito com ele. Trabalhamos no México. De manhã ficávamos juntos, à tarde eu escrevia. Foi assim durante várias semanas, até chegarmos a uma versão que agradava aos dois.

FOLHA - Quem escolheu os temas?
CARRIÈRE
- Sugeri alguns capítulos e alguns temas. É o nosso livro, mas é a vida dele. Ele não teria feito o livro sem mim, porque não gostava de escrever, mas sem ele não teria conseguido redigir, porque é a vida dele. Ele não mudou quase nada. Há coisas que eu conhecia muito bem, como a parte surrealista. Mas havia passagens que não conhecia muito, como a Guerra Civil Espanhola. Aí o interroguei de maneira precisa.

FOLHA - É um livro sobre um cineasta que mal discute sua obra. Como foi recebido no seu lançamento?
CARRIÈRE
- Há um charme, que não consigo explicar. Às vezes pego o livro para reler. Ele foi rapidamente traduzido na Espanha, onde fez um enorme sucesso e se tornou um clássico. As pessoas falam muito desse livro, é reeditado com frequência. François Truffaut uma vez me convidou para jantar só para que conversássemos sobre o livro. Ele fez uma edição sobre Hitchcock ["Hitchcock/ Truffaut - Entrevistas"], eu sobre Buñuel. Discutimos como fizemos nossos livros. Ele escreveu sobre os filmes de Hitchcock. Não fiz um livro sobre os filmes, mas sobre Buñuel. Truffaut leu duas vezes o livro. Queria saber porque eu tinha mais interesse no homem do que na obra. Disse que Buñuel é que tinha feito essa escolha. Buñuel não gostava de falar de cinema. Estávamos de acordo que não falássemos de mim. É como se ele estivesse diante de um espelho, e eu estivesse segurando o espelho.

FOLHA - Havia assuntos que ele não queria abordar? Buñuel tinha zonas obscuras em sua vida?
CARRIÈRE
- Ele não gostava de falar de tragédias na sua vida. Não gostava de falar da morte de [Federico García] Lorca, que o marcou muito. Preferia falar dos bons momentos. Por exemplo: não gostava de falar do momento em que precisou pedir demissão do Museu de Arte Moderna de Nova York, episódio em que Salvador Dalí teve responsabilidade. Gostava de guardar os bons momentos com seus velhos amigos. Posso testemunhar que era um homem de grande bondade. É raro encontrar alguém tão generoso que ao mesmo tempo tenha um olhar impiedoso sobre as coisas e as pessoas.

FOLHA - Qual é a importância de Buñuel atualmente?
CARRIÈRE
- Hoje há duas visões. Uma é dizer que era um cineasta surrealista. Outra é a visão hispânica, de que Buñuel é o maior artista espanhol desde Goya. Para qualquer romancista, cineasta, pintor ou filósofo, há um momento em que é inevitável se defrontar Buñuel.
Ele é muito mais importante do que Picasso. Picasso é pintor, mas apenas pintor. Buñuel é um personagem maior do que sua obra, não se reduz a ela. Isso era claro para mim na época, como ainda é hoje.
Por isso o livro se tornou um clássico. Releio com frequência o último parágrafo, em que ele diz que "gostaria de poder se levantar dos mortos a cada dez anos, ir até uma banca e comprar alguns jornais; voltaria ao cemitério e leria sobre os desastres do mundo, antes de voltar a adormecer, sereno".
Se eu escrevesse um livro sobre Buñuel hoje, o mostraria sobre a tumba. Diria como está o mundo atualmente, para saber o que ele acharia disso. Eu levaria os jornais para ele.


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