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"Luis Buñuel é maior do que sua obra"
Jean-Claude Carrière afirma que "Meu Último Suspiro" é "livro-retrato" e diz que Buñuel é "mais importante que Picasso"
"Não fiz um livro sobre os filmes, mas sobre Buñuel. Truffaut queria saber por que eu tinha mais interesse no homem do que na obra"
DA REPORTAGEM LOCAL
Leia entrevista com Jean-Claude Carrière, que comenta a
edição de "Meu Último Suspiro", que narra episódios na vida
do cineasta Luis Buñuel, como
a estreia de "Um Cão Andaluz",
a passagem por Hollywood e o
exílio no México.
O francês está escrevendo
um roteiro com o escritor Atiq
Rahimi e acaba de lançar
"N'Espérez pas Vous Débarrasser des Livres" (não ache que os
livros serão descartados, ed.
Grasset), entrevistas conjuntas
com Umberto Eco.
(MARCOS STRECKER)
FOLHA - "Meu Último Suspiro" é
uma obra de Luis Buñuel ou de Jean-Claude Carrière?
JEAN-CLAUDE CARRIÈRE - Nós escrevemos juntos, como se fosse
um roteiro. Na época, tínhamos
escrito um roteiro que não pôde ser filmado ["Agon"], pois
ele já estava com 80 anos, muito cansado. Como convivi 20
anos com ele, tinha tomado notas sobre sua vida. Ele me contava muitas coisas durante as
refeições e os aperitivos. Fiz os
cálculos, almoçamos juntos
mais de 2.000 vezes. Muitos casais não podem dizer isso...
Como conhecia sua vida, propus fazer o livro. Ele disse que
não queria, e que todos estavam escrevendo memórias...
Para convencê-lo, escrevi eu
mesmo o capítulo "Os Prazeres
desse Mundo". Narrei em primeira pessoa dizendo "eu, Buñuel....". Ele disse: tenho a impressão que eu mesmo escrevi.
O livro foi escrito em 1980,
ele morreu em 1983. Teve a
oportunidade de ver a edição
espanhola e gostou.
FOLHA - O livro não é uma biografia no sentido comum. Como vocês
chegaram a esse formato?
CARRIÈRE - Eu o convenci a fazer
não um livro de memórias, mas
um livro-retrato, que se pareceria com ele. Comecei com "Os
Prazeres desse Mundo" pois seria um capítulo curto, não teria
a cara de um livro de memórias.
Os que conheceram Buñuel
dizem que o livro se parece
muito com ele. Trabalhamos
no México. De manhã ficávamos juntos, à tarde eu escrevia.
Foi assim durante várias semanas, até chegarmos a uma versão que agradava aos dois.
FOLHA - Quem escolheu os temas?
CARRIÈRE - Sugeri alguns capítulos e alguns temas. É o nosso
livro, mas é a vida dele. Ele não
teria feito o livro sem mim, porque não gostava de escrever,
mas sem ele não teria conseguido redigir, porque é a vida dele.
Ele não mudou quase nada.
Há coisas que eu conhecia muito bem, como a parte surrealista. Mas havia passagens que
não conhecia muito, como a
Guerra Civil Espanhola. Aí o interroguei de maneira precisa.
FOLHA - É um livro sobre um cineasta que mal discute sua obra. Como foi recebido no seu lançamento?
CARRIÈRE - Há um charme, que
não consigo explicar. Às vezes
pego o livro para reler. Ele foi
rapidamente traduzido na Espanha, onde fez um enorme sucesso e se tornou um clássico.
As pessoas falam muito desse
livro, é reeditado com frequência. François Truffaut uma vez
me convidou para jantar só para que conversássemos sobre o
livro. Ele fez uma edição sobre
Hitchcock ["Hitchcock/ Truffaut - Entrevistas"], eu sobre
Buñuel. Discutimos como fizemos nossos livros. Ele escreveu
sobre os filmes de Hitchcock.
Não fiz um livro sobre os filmes, mas sobre Buñuel. Truffaut leu duas vezes o livro. Queria saber porque eu tinha mais
interesse no homem do que na
obra. Disse que Buñuel é que tinha feito essa escolha.
Buñuel não gostava de falar
de cinema. Estávamos de acordo que não falássemos de mim.
É como se ele estivesse diante
de um espelho, e eu estivesse
segurando o espelho.
FOLHA - Havia assuntos que ele
não queria abordar? Buñuel tinha
zonas obscuras em sua vida?
CARRIÈRE - Ele não gostava de
falar de tragédias na sua vida.
Não gostava de falar da morte
de [Federico García] Lorca, que
o marcou muito. Preferia falar
dos bons momentos.
Por exemplo: não gostava de
falar do momento em que precisou pedir demissão do Museu
de Arte Moderna de Nova York,
episódio em que Salvador Dalí
teve responsabilidade. Gostava
de guardar os bons momentos
com seus velhos amigos.
Posso testemunhar que era
um homem de grande bondade.
É raro encontrar alguém tão
generoso que ao mesmo tempo
tenha um olhar impiedoso sobre as coisas e as pessoas.
FOLHA - Qual é a importância de
Buñuel atualmente?
CARRIÈRE - Hoje há duas visões.
Uma é dizer que era um cineasta surrealista. Outra é a visão
hispânica, de que Buñuel é o
maior artista espanhol desde
Goya. Para qualquer romancista, cineasta, pintor ou filósofo,
há um momento em que é inevitável se defrontar Buñuel.
Ele é muito mais importante
do que Picasso. Picasso é pintor, mas apenas pintor. Buñuel
é um personagem maior do que
sua obra, não se reduz a ela. Isso era claro para mim na época,
como ainda é hoje.
Por isso o livro se tornou um
clássico. Releio com frequência
o último parágrafo, em que ele
diz que "gostaria de poder se levantar dos mortos a cada dez
anos, ir até uma banca e comprar alguns jornais; voltaria ao
cemitério e leria sobre os desastres do mundo, antes de voltar a adormecer, sereno".
Se eu escrevesse um livro sobre Buñuel hoje, o mostraria
sobre a tumba. Diria como está
o mundo atualmente, para saber o que ele acharia disso. Eu
levaria os jornais para ele.
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