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CARLOS HEITOR CONY
Tentativa de biografia precoce de Ziraldo
Nasceu em remoto ano do
século passado, em remota
região de Minas Gerais, e remotamente foi um rapaz de futuro até
que o futuro deu razão ao rapaz e
hoje ele é nome de escolas no Uruguai e de bibliotecas espalhadas
por remotas terras que o apreciam e que ele também aprecia.
Sua vida pública é mais ou menos sabida pelos brasileiros, por
isso mesmo me dispensarei de
narrá-la e comentá-la. Fico apenas num episódio igualmente remoto, aliás remotíssimo, que foi a
sua colação de grau como datilógrafo da Escola Pratt de Mecanografia de Caratinga, prestigiada
instituição na cidade homônima.
O jovem Ziraldo aprendeu a datilografar com os cinco dedos,
aliás, com os dez dedos regulamentares. Tirou boas notas e, como disse acima, colou grau em
festa cívico-religiosa-cultural-dançante, com direito a paraninfo, missa de ação de graças, baile
no principal salão de festas da cidade, foto coletiva dos formandos
e orador da turma que, em nome
dos demais, prometeu exercer honestamente a função de datilógrafo para o bem da humanidade
e fazendo os agradecimentos de
praxe aos professores e auxiliares
administrativos da Casa Pratt de
Caratinga.
Especial menção foi feita aos
pais dos ditos formandos, que entre outras coisas pagaram o curso,
a festa e a impressão caprichada
dos convites numa tipografia local, cujo dono foi também incluído entre os beneméritos da turma
porque só cobrou o papel, dando
grátis a impressão dos dizeres.
Constituiu um evento importante não apenas na história de
Caratinga mas na história do
próprio Ziraldo, que, com o diploma de formando em datilografia
dentro de um tubo e muitas idéias
dentro da cabeça, veio para o Rio
e para o sucesso, não em forma de
datilógrafo formado pela Casa
Pratt, mas de artista em diversos
misteres gráficos e não gráficos.
Como outro mineiro ilustre, o
vate Drummond de Andrade, que
formou-se em farmácia e jamais
aviou uma receita ou ganhou um
centavo manipulando poções de
beladona e codeína, Ziraldo não
fez carreira no ofício em que se diplomou. Numa cidade em que todos são mais ou menos humoristas, ele se destacou porque além
de humorista, é humanista - o
que vem dar na mesma.
Humanista não é, como a palavra parece indicar, um antropófago, comedor de homens, incluindo mulheres e assemelhados.
Humanista é um cara que coloca
o ser humano no centro de seus
interesses pessoais e profissionais.
Muitos são humanistas a partir
de si mesmos, mas Ziraldo continua honrando até hoje o juramento que fez no dia de sua formatura da Escola Pratt de Caratinga. Criou personagens de impacto, como a Supermãe e Bonifácio, o Bom. Tem um traço enxuto e moderno, apesar dos coletes
que usa, que não chegam a ser
modernos porque são eternos, como o citado poeta Drummond
desejava para seus versos.
O que vem a ser um colete eterno? Boa pergunta porque não há
resposta para ela. O promissor
aluno da Escola Pratt de Caratinga fez aquilo que os economistas
do governo garantem no final de
cada exercício: supera as expectativas. Distraiu adultos, criticou tiranos, elogiou os homens e mulheres de boa vontade, e depois de
tudo isso, voltou-se para o menino de Caratinga que fora, antes e
durante o curso de datilografia
na Escola Pratt, dedicando-se à literatura que alguns chamam de
infanto-juvenil e outros de literatura apenas infantil.
Tornou-se recordista de vendas
no setor e só não ficou milionário
porque a fortuna ganha como escritor mal dá para pagar seus projetos, um deles já em fase final, o
relançamento de ""O Pasquim".
No turbilhão de tantas idéias, algumas bem sucedidas, outras
nem tanto, o escritor Ziraldo foi
relegado a uma pequena obra-prima que espanta a todos os que
a conhecem. Um romance, um
pequeno grande romance, cujo título é tão estranho como o próprio Ziraldo: ""Vito Grandam -
uma história de vôos".
É o tipo de livro que qualquer
autor desejaria ter feito. Tem o
mesmo despojamento de traços
que marcaram o cartunista, o
mais enxuto de nossa molhada
paróquia de desenhistas de humor ou sem humor. Não é filosófico como Millôr, nem detalhista
como Angeli, nem perfeccionista
como Chico Caruso, nem contundente como Paulo Caruso e
Aroeira.
É Ziraldo, direto, simples,
abrangente. Pinço de seu texto
uma frase que poderia servir de
epígrafe a uma verdadeira biografia escrita com o rigor histórico do Ruy Castro ou do Fernando
Moraes: ""Sei achar ruas quando
estou perdido no meio da mata".
Mais cedo ou mais tarde, alguém escreverá esta biografia. A
que ora faço, sendo precoce e falta
de engenho e arte, fica apenas naquele rapaz que foi diplomado
pela Escola Pratt de Datilografia,
em Caratinga, que tirou retrato,
ouviu missa de ação de graças e o
discurso do orador da turma.
Não sei se ainda existem escolas
de datilografia em Caratinga. É
possível que com o advento do
computador, tudo esteja mudado, sem formatura, sem paraninfo, sem baile, sem missa de ação
de graças, sem orador da turma.
É uma pena. E justifica a conclusão desta precoce biografia: já
não se fazem Ziraldos como antigamente.
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