São Paulo, sábado, 07 de dezembro de 2002

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"OS SERTÕES - PRIMEIRA PARTE - A TERRA"

Estréia hoje montagem do grupo baseada na obra de Euclydes da Cunha

Com "Os Sertões", o Oficina funda o TBI

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Você ouve um tambor. A peça vai começar. As portas do teatro se abrem. São azuis. Oficina Paraíso, teatro Oficina. Os atores de branco vêm te buscar. Dançando e cantando. Você dança também e entra com eles já transformado num personagem da peça, já tomado pelo drama de Canudos. Antes de tudo, é preciso respirar. O público zen respira e vê o chão de cimento coberto de areia. Com isso, se transporta para o sertão.
E o que é isso que você vê? Peça de teatro? Ópera? Que pergunta, ora... Renuncia à convenção e deixa a poesia estar, o ritual acontecer. Bate tambor. Com Marcelo Drummond, você repete: "Hop, hop, hop, ho o o". Até ele entrar no papel do narrador e dizer: ""Os Sertões" foram escritos por Euclydes da Cunha nos raros intervalos de folga... Irritam-me as meias-verdades que não passam de mentiras... Autores que citam os fatos, mas desfiguram a alma... Quero ser bárbaro entre os bárbaros. Antigo entre os antigos". Com isso, expressa e assume a estética do Oficina, que quer a alma do texto e ganha porque faz bater o coração.
A peça começa, contando que no início era a viagem. Ia Euclydes se deslocando, descobrindo a terra brasileira. Como o narrador, os atores se deslocam, e você viaja até ver um casal. A que veio? Você só entende depois. Como sempre, nas peças do Zé, na vida, na psicanálise. Entende que o casal simboliza o drama pessoal de Euclydes e Conselheiro, abandonados pelas suas mulheres.
Você ouve a língua suntuosa do escritor. E redescobre que o tesouro da língua está acima de tudo. Graças a este Teatro Brasileiro da Inclusão, o TBI, onde as meninas e os meninos lindos do Bexiga rebolam dizendo o texto em alto e bom som.
A universidade baniu a literatura, o teatro incluiu e vai educar. Vários são os atores que encarnam o Conselheiro para contar a história do seu renascimento no sertão. De cajado e lençol branco. Você ouve repetidamente a palavra caatinga e descobre como ela é linda. A palavra feita nota musical.
Zé Celso, como Lula, é um educador. O que ele ensina é o Brasil. Como Euclydes, que estranhou tudo no sertão e lamentou a falta de uma formação prática -que o ensinamento acadêmico não lhe deu e não dá. Como não pensar em Lula, que nunca foi à escola e se tornou presidente do Brasil? Formou-se na escola da vida.
No fim entra o outro agente geológico notável que Euclydes havia esquecido de mencionar: o homem. E a peça culmina. Você assiste ao rito do homem nu, o índio que apaga o fogo com o próprio corpo, as brasas com a sola dos pés. Medo. Será que este teatro não vai pegar fogo? Pega simbolicamente, com uma foda ao som de um violino. O texto continua: "As montanhas que me norteiam balizando a marcha das bandeiras em busca do Eldorado". A terra é então simbolizada por uma mulher com quem Euclydes fode ao som de uma sanfona. Após ter dito: "Adeus, Bexiga". Referência a Silvio Santos. E os atores começam a apunhalar o chão. Referência ao drama da terra na modernidade.
O texto se torna satírico: "Não vamos fazer miríades de poços artesianos. Vamos continuar as obras do Minhocão". Zé Celso-Conselheiro sugere que o espectador não seja um Pôncio Pilatos, lambuze, em vez de lavar as mãos. Assim, seguido pelos 40 atores, atravessa o corredor e desaparece nos bastidores. Você fica com a imagem de um ator que leva uma placa onde se lê: "Rua Canudos". O silêncio é sagrado. Sacraliza até o barulho do trânsito, a rua Jaceguai e São Paulo, Tão Paulo, Tão.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Clarão"

Leia a íntegra do texto na Ilustrada Online (www.folha.com.br/ilustrada)


OS SERTÕES - PRIMEIRA PARTE - A TERRA. De: Euclydes da Cunha. Adaptação e direção: Zé Celso Martinez Corrêa. Onde: teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, tel. 3104-0678). Quando: sáb. e dom., às 18h. Quanto: R$ 30. Até 23/12.


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