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ERUDITO
Sonata composta em 1893 foi gravada com páginas da partitura invertidas após permanecer 104 anos guardada
Obra de Nepomuceno está errada há 11 anos
FERNANDA BASSETTE
DA REPORTAGEM LOCAL
O compositor Alberto Nepomuceno (1864-1920), um dos
maiores defensores da música
brasileira e colaborador no processo de criação de uma identidade nacional para a música clássica, tem sua "Sonata op. 9", gravada de forma indevida há 11 anos
por causa de um erro na ordem da
partitura.
Apesar de não ser a principal
obra de Nepomuceno, a sonata
foi escrita na fase acadêmica do
compositor e ficou guardada por
104 anos até ser publicada.
O erro se dá pela inversão de algumas páginas do manuscrito
original -composto em 1893- e
que está arquivado na Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro. A falha na seqüência da partitura foi
identificada pelo pianista e professor de música Luiz Guilherme
Goldberg, 44 -membro da Sociedade Brasileira de Musicologia.
Apesar de errada, a peça foi gravada e executada por dois pianistas brasileiros -Miguel Proença,
65, do Rio de Janeiro, e Maria Inês
Guimarães, 45, que mora em Paris há 16 anos.
Proença gravou integralmente a
obra de Nepomuceno em 1993,
em dois CDs. Os discos tiveram
distribuição limitada e restrita ao
Brasil. O pianista alega que gravou "o que lhe foi passado como
correto pelo neto do compositor".
Maria Inês gravou a sonata no
mesmo ano, e seu CD foi divulgado internacionalmente sob o selo
Marco Polo. Ela não soube dizer
quantas cópias já foram vendidas.
Goldberg disse que foram necessários quase seis anos de estudos para ser possível identificar a
inversão das páginas. A advertência para a pesquisa do erro surgiu
em 1997, durante uma conversa
sobre Nepomuceno entre Goldberg e Proença no aeroporto do
Galeão (Rio). Ambos tinham visitado a Bienal de Música Contemporânea na cidade.
Proença, que já havia gravado a
obra integral do compositor, comentou ter sentido uma "estranheza" na "Sonata op.9".
"Ao ouvir a gravação atentamente, eu percebi um pulo na
música, como se fosse um risco
no CD. Ouvi novamente, e a mesma coisa aconteceu. Constatei
que o problema estava na gravação, mas não sabia exatamente
onde", contou Goldberg.
O pesquisador foi além. Buscou
ouvir a gravação de Maria Inês e
viu que as duas possuíam os mesmos "defeitos". "São saltos de
compassos de um movimento para outro. É algo incoerente para
quem está lendo a partitura."
Goldberg ressalta, no entanto,
que uma pessoa leiga que está ouvindo a música talvez não perceba
o erro na gravação.
"Para um pianista é como ler
um livro com as páginas invertidas. Na linguagem musical também existe uma coerência a ser seguida e, em tese, os intérpretes deveriam ter percebido o erro", disse o pianista e professor da USP
Eduardo Monteiro.
Para compreender a falha nas
duas gravações, Goldberg teve
acesso às cópias dos manuscritos
que foram enviadas para Proença
e Maria Inês e também teve acesso
ao manuscrito original.
Após uma perícia técnica e grafológica -para constatar a autenticidade da letra e da assinatura
do compositor-, além de uma
interpretação do conteúdo musical, Goldberg descobriu que houve uma falha humana no momento de arquivar o documento, o
que deixou as páginas invertidas.
Monteiro diz, no entanto, que
mais importante do que o erro na
gravação da sonata, é perceber como a música brasileira é desconhecida e mal trabalhada. "Embora essa não seja a composição
mais famosa de Nepomuceno, é
uma sonata muito importante."
Estudioso da música brasileira e
membro da Academia Brasileira
de Música, o maestro da Sinfonia
Cultura - Orquestra da Rádio e
TV Cultura, Lutero Rodrigues, 54,
disse que o erro é um "descaso"
com a música brasileira.
"A minha posição é a seguinte:
nós nos preocupamos em gravar
a música européia com todo o
cuidado do mundo porque o nosso ideal estético é chegar a ser a
Europa um dia. E temos um descaso com a nossa cultura."
Segundo o maestro, um conhecedor de música tem condições de
perceber um salto na partitura.
"Há indícios de que a leitura da
obra não foi tão profunda. Os dois
[Proença e Maria Inês] são bons
músicos e foram levados por um
erro que pode acontecer. Mas é
um caso raro", disse o maestro.
Na opinião de Lutero, uma descoberta como essa é importante
para que os músicos tenham mais
cuidado nas gravações. "Temos
de aproveitar o erro e transformá-lo em algo construtivo."
O pianista Dante Pignatari, professor de história da música e editor do livro de partituras "Canções para Voz e Piano de Alberto
Nepomuceno", disse que é "quase
impossível" um intérprete não
perceber a falha na música.
"A leitura da partitura tem uma
continuidade e, se ela é quebrada,
deveria ser detectada. Um salto de
poucos compassos às vezes é imperceptível, mas passar de um
movimento para outro é grave. É
como se o pianista estivesse lendo
mecanicamente as notas que estão na sua frente."
O maestro Eduardo Ostergren,
61, regente da Orquestra Sinfônica da Unicamp, classifica a falha
como "acidente" e disse que é evidente que o erro estava na cópia
do manuscrito. "Assim, não houve a preocupação de seguir um
compasso melódico."
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