São Paulo, terça-feira, 07 de dezembro de 2004

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ERUDITO

Sonata composta em 1893 foi gravada com páginas da partitura invertidas após permanecer 104 anos guardada

Obra de Nepomuceno está errada há 11 anos

FERNANDA BASSETTE
DA REPORTAGEM LOCAL

O compositor Alberto Nepomuceno (1864-1920), um dos maiores defensores da música brasileira e colaborador no processo de criação de uma identidade nacional para a música clássica, tem sua "Sonata op. 9", gravada de forma indevida há 11 anos por causa de um erro na ordem da partitura.
Apesar de não ser a principal obra de Nepomuceno, a sonata foi escrita na fase acadêmica do compositor e ficou guardada por 104 anos até ser publicada.
O erro se dá pela inversão de algumas páginas do manuscrito original -composto em 1893- e que está arquivado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. A falha na seqüência da partitura foi identificada pelo pianista e professor de música Luiz Guilherme Goldberg, 44 -membro da Sociedade Brasileira de Musicologia.
Apesar de errada, a peça foi gravada e executada por dois pianistas brasileiros -Miguel Proença, 65, do Rio de Janeiro, e Maria Inês Guimarães, 45, que mora em Paris há 16 anos.
Proença gravou integralmente a obra de Nepomuceno em 1993, em dois CDs. Os discos tiveram distribuição limitada e restrita ao Brasil. O pianista alega que gravou "o que lhe foi passado como correto pelo neto do compositor".
Maria Inês gravou a sonata no mesmo ano, e seu CD foi divulgado internacionalmente sob o selo Marco Polo. Ela não soube dizer quantas cópias já foram vendidas.
Goldberg disse que foram necessários quase seis anos de estudos para ser possível identificar a inversão das páginas. A advertência para a pesquisa do erro surgiu em 1997, durante uma conversa sobre Nepomuceno entre Goldberg e Proença no aeroporto do Galeão (Rio). Ambos tinham visitado a Bienal de Música Contemporânea na cidade.
Proença, que já havia gravado a obra integral do compositor, comentou ter sentido uma "estranheza" na "Sonata op.9".
"Ao ouvir a gravação atentamente, eu percebi um pulo na música, como se fosse um risco no CD. Ouvi novamente, e a mesma coisa aconteceu. Constatei que o problema estava na gravação, mas não sabia exatamente onde", contou Goldberg.
O pesquisador foi além. Buscou ouvir a gravação de Maria Inês e viu que as duas possuíam os mesmos "defeitos". "São saltos de compassos de um movimento para outro. É algo incoerente para quem está lendo a partitura."
Goldberg ressalta, no entanto, que uma pessoa leiga que está ouvindo a música talvez não perceba o erro na gravação.
"Para um pianista é como ler um livro com as páginas invertidas. Na linguagem musical também existe uma coerência a ser seguida e, em tese, os intérpretes deveriam ter percebido o erro", disse o pianista e professor da USP Eduardo Monteiro.
Para compreender a falha nas duas gravações, Goldberg teve acesso às cópias dos manuscritos que foram enviadas para Proença e Maria Inês e também teve acesso ao manuscrito original.
Após uma perícia técnica e grafológica -para constatar a autenticidade da letra e da assinatura do compositor-, além de uma interpretação do conteúdo musical, Goldberg descobriu que houve uma falha humana no momento de arquivar o documento, o que deixou as páginas invertidas.
Monteiro diz, no entanto, que mais importante do que o erro na gravação da sonata, é perceber como a música brasileira é desconhecida e mal trabalhada. "Embora essa não seja a composição mais famosa de Nepomuceno, é uma sonata muito importante."
Estudioso da música brasileira e membro da Academia Brasileira de Música, o maestro da Sinfonia Cultura - Orquestra da Rádio e TV Cultura, Lutero Rodrigues, 54, disse que o erro é um "descaso" com a música brasileira.
"A minha posição é a seguinte: nós nos preocupamos em gravar a música européia com todo o cuidado do mundo porque o nosso ideal estético é chegar a ser a Europa um dia. E temos um descaso com a nossa cultura."
Segundo o maestro, um conhecedor de música tem condições de perceber um salto na partitura. "Há indícios de que a leitura da obra não foi tão profunda. Os dois [Proença e Maria Inês] são bons músicos e foram levados por um erro que pode acontecer. Mas é um caso raro", disse o maestro.
Na opinião de Lutero, uma descoberta como essa é importante para que os músicos tenham mais cuidado nas gravações. "Temos de aproveitar o erro e transformá-lo em algo construtivo."
O pianista Dante Pignatari, professor de história da música e editor do livro de partituras "Canções para Voz e Piano de Alberto Nepomuceno", disse que é "quase impossível" um intérprete não perceber a falha na música.
"A leitura da partitura tem uma continuidade e, se ela é quebrada, deveria ser detectada. Um salto de poucos compassos às vezes é imperceptível, mas passar de um movimento para outro é grave. É como se o pianista estivesse lendo mecanicamente as notas que estão na sua frente."
O maestro Eduardo Ostergren, 61, regente da Orquestra Sinfônica da Unicamp, classifica a falha como "acidente" e disse que é evidente que o erro estava na cópia do manuscrito. "Assim, não houve a preocupação de seguir um compasso melódico."


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