São Paulo, quarta-feira, 07 de dezembro de 2005

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MARCELO COELHO

Últimas notícias do Holocausto

Como todo mundo, os guardas do campo de concentração de Auschwitz também precisavam de descanso de vez em quando. Como conseguir uns dias de folga? Um jeito mais ou menos fácil era o seguinte:
Os prisioneiros judeus estão marchando para o trabalho. O guarda se aproxima, arranca o boné da cabeça de um deles e joga-o para longe. Depois, ordena ao prisioneiro que vá correndo pegar o boné. O prisioneiro obedece. O guarda atira: diz que o prisioneiro estava tentando fugir. Recebe, então, congratulações e férias por ter impedido a fuga.
O episódio não ocupa mais do que dois quadrinhos de "Maus", a "graphic novel" em oito capítulos escrita e desenhada por Art Spiegelman, de 1978 a 1991. Publicada no Brasil em duas partes, pela Brasiliense, em 1986 e em 1995, "Maus" agora tem uma reedição pela Companhia das Letras, num único volume de quase 300 páginas.
Pode parecer estranha a idéia de adaptar para histórias em quadrinhos um testemunho do Holocausto. Art Spiegelman conseguiu isso sem cair no sensacionalismo, na espetacularização virtuosística do horror que às vezes caracteriza, por influência do cinema, as obras em quadrinhos para adultos. Bem ao contrário: o estilo visual do livro manteve, ao longo dos muitos anos de sua elaboração, um admirável equilíbrio de austeridade e delicadeza, de eficiência medida e de pudor, a ponto de parecer monótono para quem o folheia desatento numa livraria.
É devagar, página por página, como quem lê um romance tradicional, que vamos tomando conhecimento da personalidade de Vladek Spiegelman (pai do autor na vida real) e da história de sua sobrevivência no campo de extermínio. Obviamente, o impacto emocional desse tipo de narrativa atinge níveis extremos e, do ponto de vista estético, o problema reside justamente em como graduar a violência da exposição de modo a não violentar a sensibilidade do leitor na tentativa de emocioná-lo.
As soluções que Art Spiegelman encontrou para isso foram simples e consistentes. A mais conhecida foi a de desenhar todos seus personagens com rostos de animais: os judeus têm cara de rato, os alemães são felinos de dentes aguçados, os poloneses ganham aparência de porcos, os americanos são cachorros. Claro que com isso, em primeiro lugar, as expressões faciais se reduzem a um repertório mínimo, e cenas ferozes podem ser apresentadas sem infidelidade, evitando ao mesmo tempo cair no macabro ou no hediondo.
Pode-se identificar, ademais, uma dupla ironia nesse recurso. Em primeiro lugar, aquele mundo -o do nazismo- não tinha de fato nada que merecesse a qualificação de humano, de modo que o "irrealismo" dos desenhos corresponderia em parte à irrealidade da própria situação. Por outro lado, há um grande "realismo" nos ratos, cachorros e gatos de Spiegelman, se comparados aos de Walt Disney: assim, o mundo feérico e maníaco de Mickey Mouse está nas entrelinhas de "Maus", como numa espécie de contraponto ausente às verdades insuportáveis da narrativa.
Outro recurso estético utilizado por Spiegelman é de tipo mais literário. O livro entremeia as memórias de Auschwitz com cenas do presente, colocando o protagonista da história em duas situações distintas. Vladek não é o tempo todo uma vítima de quem só devêssemos nos apiedar, mas é também o pai neurótico, chatíssimo, manipulador, afetivo e torturado do próprio quadrinista.
Torna-se, assim, uma figura notável, economizando fósforos e migalhas de cereal em plena abundância norte-americana. Revela-se racista e implicante, engenhoso e espontâneo; sua plena realização como personagem, a meu ver, se confirma quando vemos uma outra personagem, já no final do livro, dar uma definição surpreendente e plausível a seu respeito: não há melhor teste do que esse, a meu ver, para se avaliar o sucesso de uma determinada caracterização literária.
As cenas de horror, apesar de todo esse cuidado estético, são de tirar o sono. Não vou mencioná-las. Basta dizer que, à medida que a guerra vai terminando, tudo se torna ainda pior. Os nazistas tratam de acelerar o processo de extermínio dos judeus, sem fornos crematórios que dessem conta da tarefa. Determinam a construção de grandes poços, "covas grandes como piscinas", diz Vladek, onde são jogados os cadáveres. "Felizes dos que morriam na câmara de gás antes de ir para as covas", prossegue, e o texto reproduz o seu sotaque de imigrante: "Outros tinham de pular nos covas quando ainda estavam vivos. Prisioneiros que trabalhava lá jogava gasolina nos vivos e nos mortos. Pegavam gordura dos corpos que queimava e jogava de novo por cima para todo mundo queimar melhor".
Não é preciso -nem é possível- ir mais longe. Isso era o nazismo.
É preciso, entretanto, mencionar que, na semana passada, no Rio de Janeiro, traficantes fecharam um ônibus com os passageiros dentro, cobertos de gasolina, e puseram fogo neles vivos.
Um crime assim não poderia deixar de ser punido pelas autoridades. De fato, elas agiram prontamente: no dia seguinte, outros traficantes fuzilaram os suspeitos do massacre.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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