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MARCELO COELHO
Últimas notícias do Holocausto
Como todo mundo, os guardas do campo de concentração de Auschwitz também precisavam de descanso de vez em
quando. Como conseguir uns dias
de folga? Um jeito mais ou menos
fácil era o seguinte:
Os prisioneiros judeus estão
marchando para o trabalho. O
guarda se aproxima, arranca o
boné da cabeça de um deles e joga-o para longe. Depois, ordena
ao prisioneiro que vá correndo
pegar o boné. O prisioneiro obedece. O guarda atira: diz que o
prisioneiro estava tentando fugir.
Recebe, então, congratulações e
férias por ter impedido a fuga.
O episódio não ocupa mais do
que dois quadrinhos de "Maus", a
"graphic novel" em oito capítulos
escrita e desenhada por Art Spiegelman, de 1978 a 1991. Publicada
no Brasil em duas partes, pela
Brasiliense, em 1986 e em 1995,
"Maus" agora tem uma reedição
pela Companhia das Letras, num
único volume de quase 300 páginas.
Pode parecer estranha a idéia
de adaptar para histórias em
quadrinhos um testemunho do
Holocausto. Art Spiegelman conseguiu isso sem cair no sensacionalismo, na espetacularização
virtuosística do horror que às vezes caracteriza, por influência do
cinema, as obras em quadrinhos
para adultos. Bem ao contrário: o
estilo visual do livro manteve, ao
longo dos muitos anos de sua elaboração, um admirável equilíbrio
de austeridade e delicadeza, de
eficiência medida e de pudor, a
ponto de parecer monótono para
quem o folheia desatento numa
livraria.
É devagar, página por página,
como quem lê um romance tradicional, que vamos tomando conhecimento da personalidade de
Vladek Spiegelman (pai do autor
na vida real) e da história de sua
sobrevivência no campo de extermínio. Obviamente, o impacto
emocional desse tipo de narrativa
atinge níveis extremos e, do ponto
de vista estético, o problema reside justamente em como graduar
a violência da exposição de modo
a não violentar a sensibilidade do
leitor na tentativa de emocioná-lo.
As soluções que Art Spiegelman
encontrou para isso foram simples e consistentes. A mais conhecida foi a de desenhar todos seus
personagens com rostos de animais: os judeus têm cara de rato,
os alemães são felinos de dentes
aguçados, os poloneses ganham
aparência de porcos, os americanos são cachorros. Claro que com
isso, em primeiro lugar, as expressões faciais se reduzem a um repertório mínimo, e cenas ferozes
podem ser apresentadas sem infidelidade, evitando ao mesmo
tempo cair no macabro ou no hediondo.
Pode-se identificar, ademais,
uma dupla ironia nesse recurso.
Em primeiro lugar, aquele mundo -o do nazismo- não tinha
de fato nada que merecesse a
qualificação de humano, de modo que o "irrealismo" dos desenhos corresponderia em parte à
irrealidade da própria situação.
Por outro lado, há um grande
"realismo" nos ratos, cachorros e
gatos de Spiegelman, se comparados aos de Walt Disney: assim, o
mundo feérico e maníaco de Mickey Mouse está nas entrelinhas de
"Maus", como numa espécie de
contraponto ausente às verdades
insuportáveis da narrativa.
Outro recurso estético utilizado
por Spiegelman é de tipo mais literário. O livro entremeia as memórias de Auschwitz com cenas
do presente, colocando o protagonista da história em duas situações distintas. Vladek não é o
tempo todo uma vítima de quem
só devêssemos nos apiedar, mas é
também o pai neurótico, chatíssimo, manipulador, afetivo e torturado do próprio quadrinista.
Torna-se, assim, uma figura notável, economizando fósforos e
migalhas de cereal em plena
abundância norte-americana.
Revela-se racista e implicante, engenhoso e espontâneo; sua plena
realização como personagem, a
meu ver, se confirma quando vemos uma outra personagem, já
no final do livro, dar uma definição surpreendente e plausível a
seu respeito: não há melhor teste
do que esse, a meu ver, para se
avaliar o sucesso de uma determinada caracterização literária.
As cenas de horror, apesar de
todo esse cuidado estético, são de
tirar o sono. Não vou mencioná-las. Basta dizer que, à medida que
a guerra vai terminando, tudo se
torna ainda pior. Os nazistas tratam de acelerar o processo de extermínio dos judeus, sem fornos
crematórios que dessem conta da
tarefa. Determinam a construção
de grandes poços, "covas grandes
como piscinas", diz Vladek, onde
são jogados os cadáveres. "Felizes
dos que morriam na câmara de
gás antes de ir para as covas",
prossegue, e o texto reproduz o
seu sotaque de imigrante: "Outros
tinham de pular nos covas quando ainda estavam vivos. Prisioneiros que trabalhava lá jogava
gasolina nos vivos e nos mortos.
Pegavam gordura dos corpos que
queimava e jogava de novo por
cima para todo mundo queimar
melhor".
Não é preciso -nem é possível- ir mais longe. Isso era o nazismo.
É preciso, entretanto, mencionar que, na semana passada, no
Rio de Janeiro, traficantes fecharam um ônibus com os passageiros dentro, cobertos de gasolina, e
puseram fogo neles vivos.
Um crime assim não poderia
deixar de ser punido pelas autoridades. De fato, elas agiram prontamente: no dia seguinte, outros
traficantes fuzilaram os suspeitos
do massacre.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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