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RESENHA DA SEMANA
Jorge Luis Borges vezes quatro
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
O quarto e último volume das
obras completas
de Jorge Luis
Borges, publicadas no Brasil pela
editora Globo, não reúne propriamente nada de fundamental do autor de "Ficções" e de
"O Aleph", títulos incluídos já
no primeiro volume, que cobre
os anos de 1923 a 1949.
"Obras Completas 4" (com
textos de 1975 a 1988) contém
os prólogos dispersos de Borges para obras de outros autores (reunidos em livro em
1975); cinco conferências do
escritor na Universidade de
Belgrano (publicadas em 1979
sob o título "Borges, Oral");
suas colaborações à revista "El
Hogar" também coletadas em
livro ("Textos Cativos", 1986) e
66 prefácios que escreveu para
uma coleção de grandes obras
("Biblioteca Pessoal, Prólogos", 1988).
São textos marginais, secundários, e ainda assim possuem
algo de fundamental, pois reiteram a idéia mais essencial e
cara a toda a obra do escritor
argentino: que a literatura é a
arte de fazer existir o inexistente.
Não é à toa que em seu "Prólogo de Prólogos", uma introdução à coletânea de prefácios
de 1975, Borges termine especulando sobre um projeto tipicamente borgiano: "A revisão
destas páginas esquecidas sugeriu-me o plano de outro livro, mais original e melhor,
que ofereço aos que desejarem
executá-lo. Penso que exige
mãos mais destras e uma tenacidade que já me abandonou.
(...) Constaria de uma série de
prólogos de livros que não existem. Seria pródigo em citações
exemplares dessas obras possíveis".
Para além do que aos mais ranhetas pode parecer simples
repetição de uma fórmula hoje
considerada fácil (que tudo
não passa de ficção), idéia original que Borges muito contribuiu a divulgar, a ponto de acabar inevitavelmente identificado ao clichê que dela se desprendeu, emerge um idealismo
muito peculiar dessa obsessão
pela lógica e os paradoxos do
tempo, pela imortalidade, pelos labirintos etc.
No prólogo às obras completas de Lewis Carroll, Borges escreve o seguinte: "No capítulo
segundo de "Symbolic Logic"
(1892), C.L. Dodgson, cujo nome perdurável é Lewis Carroll,
escreveu que o universo consta
de coisas que podem ser ordenadas por classes e que uma
destas é a classe das coisas impossíveis. Deu como exemplo a
classe das coisas que pesam
mais de uma tonelada e que
uma criança é capaz de levantar. Se não existissem, se não
fossem parte de nossa felicidade, diríamos que os livros de
Alice correspondem a essa categoria".
Para Borges, a própria essência da literatura, da imaginação
e do sonho é a possibilidade do
impossível.
Na literatura, o que não existe
passa a existir pela simples
menção. É esse o seu maior poder e o paradoxo crucial em
Borges. A imaginação é a única
forma -uma forma criativa-
dada ao homem para lidar com
a impossibilidade. E basta imaginar a impossibilidade para
torná-la possível. Daí o interesse do autor pelo inconcebível,
pelo Aleph e os caminhos que
se bifurcam.
No prólogo a "Os Três Impostores", que ele define como
a obra-prima do galês Arthur
Machen (1863-1947), Borges
escreve que "toda ficção é uma
impostura; o que importa é
sentir que ela foi sonhada com
sinceridade". Também dirá sobre "A Descrição do Mundo",
de Marco Polo, que "aquilo que
os homens imaginam não é
menos real que aquilo a que
chamam de realidade".
Ainda no prólogo sobre Machen, o escritor inicia sua argumentação com uma anedota:
"No princípio daquilo que um
historiador holandês chamou,
indefinidamente, a Idade Moderna, difundiu-se por toda a
Europa o nome de um livro,
"De Tribus Impostoribus", cujos protagonistas eram Moisés,
Jesus Cristo e Maomé, e que as
alarmadas autoridades queriam descobrir e destruir. Nunca o encontraram, pela simples
razão de que não existia".
O conjunto desses textos
marginais, aparentemente de
simples apresentação e divulgação, reafirma uma noção da
literatura como forma de conceber o inconcebível, o impossível e o inexplicável.
Sobre "Benito Cereno", Borges diz: "Há quem tenha sugerido que Herman Melville propôs-se escrever um texto deliberadamente inexplicável que
fosse um símbolo cabal deste
mundo, também inexplicável".
O próprio Borges, ao comentar "Sartor Resartus", de Thomas Carlyle, define o idealismo
como a doutrina que "afirma
que o universo é uma aparência". O idealismo borgiano vai
além. Para ele, admirador de
Lewis Carroll e de Swedenborg,
o universo começa quando a
aparência chega ao paroxismo,
quando a imaginação estende a
lógica aos seus limites paradoxais. O universo começa, assim, por um ato criativo e desafiador da imaginação. Ele começa pela literatura.
Avaliação:
Livro: Obras Completas 4
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução: Josely Vianna Baptista,
Maria Rosinda Ramos da Silva e
Sérgio Molina
Lançamento: editora Globo
Quanto: R$ 44 (680 págs.)
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