São Paulo, Sábado, 08 de Janeiro de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Jorge Luis Borges vezes quatro

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


O quarto e último volume das obras completas de Jorge Luis Borges, publicadas no Brasil pela editora Globo, não reúne propriamente nada de fundamental do autor de "Ficções" e de "O Aleph", títulos incluídos já no primeiro volume, que cobre os anos de 1923 a 1949.
"Obras Completas 4" (com textos de 1975 a 1988) contém os prólogos dispersos de Borges para obras de outros autores (reunidos em livro em 1975); cinco conferências do escritor na Universidade de Belgrano (publicadas em 1979 sob o título "Borges, Oral"); suas colaborações à revista "El Hogar" também coletadas em livro ("Textos Cativos", 1986) e 66 prefácios que escreveu para uma coleção de grandes obras ("Biblioteca Pessoal, Prólogos", 1988).
São textos marginais, secundários, e ainda assim possuem algo de fundamental, pois reiteram a idéia mais essencial e cara a toda a obra do escritor argentino: que a literatura é a arte de fazer existir o inexistente.
Não é à toa que em seu "Prólogo de Prólogos", uma introdução à coletânea de prefácios de 1975, Borges termine especulando sobre um projeto tipicamente borgiano: "A revisão destas páginas esquecidas sugeriu-me o plano de outro livro, mais original e melhor, que ofereço aos que desejarem executá-lo. Penso que exige mãos mais destras e uma tenacidade que já me abandonou. (...) Constaria de uma série de prólogos de livros que não existem. Seria pródigo em citações exemplares dessas obras possíveis".
Para além do que aos mais ranhetas pode parecer simples repetição de uma fórmula hoje considerada fácil (que tudo não passa de ficção), idéia original que Borges muito contribuiu a divulgar, a ponto de acabar inevitavelmente identificado ao clichê que dela se desprendeu, emerge um idealismo muito peculiar dessa obsessão pela lógica e os paradoxos do tempo, pela imortalidade, pelos labirintos etc.
No prólogo às obras completas de Lewis Carroll, Borges escreve o seguinte: "No capítulo segundo de "Symbolic Logic" (1892), C.L. Dodgson, cujo nome perdurável é Lewis Carroll, escreveu que o universo consta de coisas que podem ser ordenadas por classes e que uma destas é a classe das coisas impossíveis. Deu como exemplo a classe das coisas que pesam mais de uma tonelada e que uma criança é capaz de levantar. Se não existissem, se não fossem parte de nossa felicidade, diríamos que os livros de Alice correspondem a essa categoria".
Para Borges, a própria essência da literatura, da imaginação e do sonho é a possibilidade do impossível.
Na literatura, o que não existe passa a existir pela simples menção. É esse o seu maior poder e o paradoxo crucial em Borges. A imaginação é a única forma -uma forma criativa- dada ao homem para lidar com a impossibilidade. E basta imaginar a impossibilidade para torná-la possível. Daí o interesse do autor pelo inconcebível, pelo Aleph e os caminhos que se bifurcam.
No prólogo a "Os Três Impostores", que ele define como a obra-prima do galês Arthur Machen (1863-1947), Borges escreve que "toda ficção é uma impostura; o que importa é sentir que ela foi sonhada com sinceridade". Também dirá sobre "A Descrição do Mundo", de Marco Polo, que "aquilo que os homens imaginam não é menos real que aquilo a que chamam de realidade".
Ainda no prólogo sobre Machen, o escritor inicia sua argumentação com uma anedota: "No princípio daquilo que um historiador holandês chamou, indefinidamente, a Idade Moderna, difundiu-se por toda a Europa o nome de um livro, "De Tribus Impostoribus", cujos protagonistas eram Moisés, Jesus Cristo e Maomé, e que as alarmadas autoridades queriam descobrir e destruir. Nunca o encontraram, pela simples razão de que não existia".
O conjunto desses textos marginais, aparentemente de simples apresentação e divulgação, reafirma uma noção da literatura como forma de conceber o inconcebível, o impossível e o inexplicável.
Sobre "Benito Cereno", Borges diz: "Há quem tenha sugerido que Herman Melville propôs-se escrever um texto deliberadamente inexplicável que fosse um símbolo cabal deste mundo, também inexplicável".
O próprio Borges, ao comentar "Sartor Resartus", de Thomas Carlyle, define o idealismo como a doutrina que "afirma que o universo é uma aparência". O idealismo borgiano vai além. Para ele, admirador de Lewis Carroll e de Swedenborg, o universo começa quando a aparência chega ao paroxismo, quando a imaginação estende a lógica aos seus limites paradoxais. O universo começa, assim, por um ato criativo e desafiador da imaginação. Ele começa pela literatura.


Avaliação:     


Livro: Obras Completas 4
Autor: Jorge Luis Borges
Tradução: Josely Vianna Baptista, Maria Rosinda Ramos da Silva e Sérgio Molina
Lançamento: editora Globo
Quanto: R$ 44 (680 págs.)


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