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ARIANO SUASSUNA
O Grande Sertão e sua Demanda
ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo
idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de
casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia
e Licenciado em Artes Ariano Suassuna
ROSA E A INDAGAÇÃO SOBRE O MUNDO
O Grande Sertão: Veredas, gesta brasileira dos "campos gerais"
de Minas, também possui, como
A Demanda do Santo Graal,
além da grande força narrativa
épica, seus enigmas filosóficos,
seus mitos, seu alto sentido simbólico.
Ali, o Sertão é o Mundo. E Riobaldo -herói errante, como Ulisses- é o homem que o atravessa,
que faz sua travessia, palavra-chave que encerra uma das três
grandes Narrativas épicas do Brasil: sem se falar na voz, apenas augural e fundadora de José de
Alencar, essas três Narrativas são
Os Sertões, de Euclydes da Cunha, Pedra Bonita-Cangaceiros,
de José Lins do Rego, e Grande
Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
Rosa, atento ao enigma do
Mundo, não é um filósofo -e ai
do seu romance se o fosse. Mas,
como acontece a qualquer pessoa,
fez a si mesmo algumas das grandes indagações filosóficas, as mesmas do grande mural de Gauguin.
Quem somos nós? De onde viemos? Onde estamos? Para onde
vamos?
Neste Sertão das perguntas, neste planalto empoeirado, nesta região de mito e transcendência que
é a terra-de-ninguém onde se encontram religiosos e ateus diante
do mesmo enigma, e onde a Morte, o destino, o acaso, a fatalidade,
o caos e o absurdo latem como feras; por este Sertão estranho, que
em dado momento se apresenta
como ameaça a qualquer ser humano de qualquer lugar do mundo; por aí, por esta terra do Sertão
mineiro (encarnação particular
do Sertão geral do Mundo), erram
Riobaldo e seus Jagunços, procurando levar a termo a tarefa de todos nós -a estranha, perigosa e
fascinante tarefa de viver.
E viver é tudo. É indagar, é sobreviver. É lutar contra os inimigos ou contra a brutalidade, a injustiça e a crueldade. É lutar contra a fome ou contra o Enigma, na
tentativa de decifrá-lo. É saber escapar no momento necessário. É
amar, é envelhecer e é morrer.
É por isso que, apesar de não
ser, graças a Deus, um "romance
filosófico", Grande Sertão: Veredas tem profundas implicações filosóficas. Rosa não é Kafka. Mas
Riobaldo, herói errante como
Ulisses, também está submetido
ao estranho processo do Mundo:
este processo no qual, sem sermos
consultados, nós somos impelidos a participar do estranho jogo
da Vida; e no qual, mal despertamos no desértico Sertão a que somos arremessados, já nos descobrimos condenados à morte, por
um crime desconhecido e terrível
que não nos lembramos de ter cometido.
É aí que surgem esses nomes
que cada um interpreta como pode -o acaso, o destino, a fatalidade, o enigma, a necessidade, o sofrimento, o mal, a morte. Parece
que são, todos eles, faces diferentes da mesma realidade estranha e
aterradora.
Mesmo às pessoas mais dotadas
de força vital elas aparecem, essas
divindades que nos espreitam por
dentro e de fora, oblíquas e perigosas, molhadas de caos. E o homem instintivamente se opõe a
elas. Mas, ao mesmo tempo, sabe
que pelo simples fato de dar nome
à ameaça diminui seu perigo.
Pressente sua natureza perigosa e
hostil ao sangue do rebanho, mas
sabe que quem dá nome aos perigos do mundo começa a tornar
sua ferocidade menos temerosa.
Todo esforço para se alçar ao
Divino (seja esforço de conhecimento, seja esforço de beleza, seja
esforço de justiça) é uma tentativa
de dar sentido e ordem a esse
Caos que ameaça o homem. Mesmo quando se trata de um Jagunço como Riobaldo. No seu esforço
desorientado de revolta, sente-se
seu desejo de divino e de sobreposição ao diabólico -a luta do ser
humano em busca de algo mais
puro, mais belo e mais ardente do
que ele mesmo.
É verdade que Riobaldo é um
Jagunço, assim como muitos nordestinos foram Cangaceiros. Mas
temos nós o direito de julgá-los?
Talvez nossa violência esteja apenas escondida. Talvez sejamos pacíficos simplesmente por covardia. Nas condições em que Riobaldo nasceu e viveu, no áspero
ambiente dos "campos gerais" de
Minas, aquela foi a dura maneira
de vida que lhe apareceu e que ele
foi levado a escolher.
E a vida não é somente áspera,
dura, feia, perigosa. Existem as
madrugadas diante da areia branca, logo dourada pelos raios do
Sol nascente. Existem pássaros
graciosos que pousam em tais
areias como por milagre, diante
de nossos olhos. Existem as mulheres de corpo macio. E o vinho,
o fulgor e a alegria dos combates,
as cavalgadas noturnas pelo mato
cheiroso, que banham tudo de
uma estranha e forte poesia.
Guimarães Rosa, amante meio
pagão e heterodoxo da vida, era
também profundamente religioso. Parecia dizer, como seu personagem, que uma religião só não
era suficiente para pagar o crime,
o sangue e as culpas de uma vida
inteira -mesmo das que parecem mais inocentes. Não existe
inocência pura, não existe culpa
pura em ninguém: todos nós somos, ao mesmo tempo, inteiramente inocentes e profundamente culpados. E, a seu modo, cada
um de nós pode repetir a frase de
Xavier de Maistre: "Não conheço,
por dentro, a alma do criminoso.
Conheço a do homem honesto: é
horrorosa".
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