São Paulo, segunda-feira, 08 de janeiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARIANO SUASSUNA
O Grande Sertão e sua Demanda

ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

ROSA E A INDAGAÇÃO SOBRE O MUNDO
O Grande Sertão: Veredas, gesta brasileira dos "campos gerais" de Minas, também possui, como A Demanda do Santo Graal, além da grande força narrativa épica, seus enigmas filosóficos, seus mitos, seu alto sentido simbólico.
Ali, o Sertão é o Mundo. E Riobaldo -herói errante, como Ulisses- é o homem que o atravessa, que faz sua travessia, palavra-chave que encerra uma das três grandes Narrativas épicas do Brasil: sem se falar na voz, apenas augural e fundadora de José de Alencar, essas três Narrativas são Os Sertões, de Euclydes da Cunha, Pedra Bonita-Cangaceiros, de José Lins do Rego, e Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa.
Rosa, atento ao enigma do Mundo, não é um filósofo -e ai do seu romance se o fosse. Mas, como acontece a qualquer pessoa, fez a si mesmo algumas das grandes indagações filosóficas, as mesmas do grande mural de Gauguin. Quem somos nós? De onde viemos? Onde estamos? Para onde vamos?
Neste Sertão das perguntas, neste planalto empoeirado, nesta região de mito e transcendência que é a terra-de-ninguém onde se encontram religiosos e ateus diante do mesmo enigma, e onde a Morte, o destino, o acaso, a fatalidade, o caos e o absurdo latem como feras; por este Sertão estranho, que em dado momento se apresenta como ameaça a qualquer ser humano de qualquer lugar do mundo; por aí, por esta terra do Sertão mineiro (encarnação particular do Sertão geral do Mundo), erram Riobaldo e seus Jagunços, procurando levar a termo a tarefa de todos nós -a estranha, perigosa e fascinante tarefa de viver.
E viver é tudo. É indagar, é sobreviver. É lutar contra os inimigos ou contra a brutalidade, a injustiça e a crueldade. É lutar contra a fome ou contra o Enigma, na tentativa de decifrá-lo. É saber escapar no momento necessário. É amar, é envelhecer e é morrer.
É por isso que, apesar de não ser, graças a Deus, um "romance filosófico", Grande Sertão: Veredas tem profundas implicações filosóficas. Rosa não é Kafka. Mas Riobaldo, herói errante como Ulisses, também está submetido ao estranho processo do Mundo: este processo no qual, sem sermos consultados, nós somos impelidos a participar do estranho jogo da Vida; e no qual, mal despertamos no desértico Sertão a que somos arremessados, já nos descobrimos condenados à morte, por um crime desconhecido e terrível que não nos lembramos de ter cometido.
É aí que surgem esses nomes que cada um interpreta como pode -o acaso, o destino, a fatalidade, o enigma, a necessidade, o sofrimento, o mal, a morte. Parece que são, todos eles, faces diferentes da mesma realidade estranha e aterradora.
Mesmo às pessoas mais dotadas de força vital elas aparecem, essas divindades que nos espreitam por dentro e de fora, oblíquas e perigosas, molhadas de caos. E o homem instintivamente se opõe a elas. Mas, ao mesmo tempo, sabe que pelo simples fato de dar nome à ameaça diminui seu perigo. Pressente sua natureza perigosa e hostil ao sangue do rebanho, mas sabe que quem dá nome aos perigos do mundo começa a tornar sua ferocidade menos temerosa.
Todo esforço para se alçar ao Divino (seja esforço de conhecimento, seja esforço de beleza, seja esforço de justiça) é uma tentativa de dar sentido e ordem a esse Caos que ameaça o homem. Mesmo quando se trata de um Jagunço como Riobaldo. No seu esforço desorientado de revolta, sente-se seu desejo de divino e de sobreposição ao diabólico -a luta do ser humano em busca de algo mais puro, mais belo e mais ardente do que ele mesmo.
É verdade que Riobaldo é um Jagunço, assim como muitos nordestinos foram Cangaceiros. Mas temos nós o direito de julgá-los? Talvez nossa violência esteja apenas escondida. Talvez sejamos pacíficos simplesmente por covardia. Nas condições em que Riobaldo nasceu e viveu, no áspero ambiente dos "campos gerais" de Minas, aquela foi a dura maneira de vida que lhe apareceu e que ele foi levado a escolher.
E a vida não é somente áspera, dura, feia, perigosa. Existem as madrugadas diante da areia branca, logo dourada pelos raios do Sol nascente. Existem pássaros graciosos que pousam em tais areias como por milagre, diante de nossos olhos. Existem as mulheres de corpo macio. E o vinho, o fulgor e a alegria dos combates, as cavalgadas noturnas pelo mato cheiroso, que banham tudo de uma estranha e forte poesia.
Guimarães Rosa, amante meio pagão e heterodoxo da vida, era também profundamente religioso. Parecia dizer, como seu personagem, que uma religião só não era suficiente para pagar o crime, o sangue e as culpas de uma vida inteira -mesmo das que parecem mais inocentes. Não existe inocência pura, não existe culpa pura em ninguém: todos nós somos, ao mesmo tempo, inteiramente inocentes e profundamente culpados. E, a seu modo, cada um de nós pode repetir a frase de Xavier de Maistre: "Não conheço, por dentro, a alma do criminoso. Conheço a do homem honesto: é horrorosa".



Texto Anterior: Academia homenageia José Lins do Rego
Próximo Texto: Panorâmica: "Revolver" é eleito o melhor disco da história
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.