São Paulo, sexta-feira, 08 de fevereiro de 2002

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A fabulosa carreira de um filme francês


Longa de Jean-Pierre Jeunet, que estréia hoje no Brasil, já foi visto por 8 milhões de pessoas na França; no mundo, conquistou 17 milhões


ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

"O Fabuloso Destino de Amélie Poulain" é o maior fenômeno do cinema francês em décadas. Já foi visto por 8 milhões de pessoas na França e mais de 17 milhões no resto do mundo.
É também a maior bilheteria de um filme francês em 20 anos nos Estados Unidos, onde foi exibido logo após a tragédia de 11 de setembro, com grande impacto, pelo otimismo e a valorização da vida comum que ele propagandeia.
Onde quer que seja mostrado, "Amélie" vira uma mania. Os espectadores em geral adoram. A crítica menos. É um caso perfeito de indiferença do público pela crítica, e vice-versa.
O que fascina tanto o público em "Amélie Poulain"? O otimismo, justamente. A simpatia e o charme da atriz Audrey Tautou, que faz a personagem-título. A ambiência lírica de Paris. A adesão do diretor, Jean-Pierre Jeunet, aos tipos comuns e à vida banal. A linguagem ágil e truncada, com muito da velocidade do videoclipe, do desenho animado e da publicidade. O clima de conto-de-fadas contemporâneo. As sucessivas pequenas surpresas que o filme apronta para o espectador, como num jogo humorístico e sentimental. Não acabam os motivos de fascinação.
"Amélie" é a auto-ajuda consagrada como forma de narrativa cinematográfica. A sua personagem é uma descendente pós-moderna de Polyanna, a famosa personagem do livro de Eleanor Porter que deseja fazer todo mundo feliz. Como Polyanna, Amélie descobre um mundo cheio de gente triste e acabrunhada. Resolve que elas precisam redescobrir a graça de estarem vivas. Consegue, por meio de 1.001 estripulias. Ao contrário de Polyanna, Amélie age muito e fala pouco.
As suas estripulias consistem em quebrar a cadeia do hábito a que os personagens estão presos e que os impede de descobrir a novidade da vida. Consistem também em devolver a memória de um belo momento da existência às pessoas, o que as permite encontrar de novo a capacidade individual de reencantamento.
A vida corriqueira e habitual entra em choque no filme com a narrativa de sobressaltos, uma alimentando a outra. Amélie é a mais comum das personagens, mas ela tem a capacidade de rearranjar o jogo do destino aparente, agitando o mundo alheio, em favor do que julga ser a felicidade prometida. Ela bagunça as peças para levar a cada um a sua auto-satisfação.
O espectador se rejubila com o jogo de Amélie contra a mania paralisante das pessoas, contra o fatalismo das coisas e a negatividade do destino. O mundo é bom, individualmente falando. Cada pessoa, do fundo de seu anonimato, tem um destino fabuloso, e não apenas a princesa Diana, cuja morte é citada no filme. A magia de Amélie consiste em valorizar o indivíduo banal num tempo de fetichização extremada de celebridades.
O mundo não comparece em "Amélie Poulain" como interrogação nem incômodo, como desafio de algo que lhe seja na verdade estranho e incompreensível. Os pequenos mistérios da vida são facilmente solucionados por uma investigação paranóica, como a de Amélie. O sistema é fechado e joga com a sublimação da personagem e do espectador, cujo gozo-recompensa será, naturalmente, o "happy end".
Os personagens, por sua vez, não se constroem de fato diante do espectador. Eles já estão dados, são arquétipos gerais de uma macro-ilustração. Os conflitos entre eles são estritamente formais, para o bom funcionamento da lógica narrativa, para o cumprimento do jogo de Amélie. Assim, a mensagem do filme (é o caso de empregar o termo infeliz), aquela de que cada vida é fabulosa em si mesma, se autodenega, ao tirar dos personagens a autonomia e as contradições internas. Falta a espontaneidade da vida no filme, que o cinema capta como nenhum meio.
Jeunet não acredita muito no cinema como instrumento de percepção e descobrimento do mundo. Seu filme é hiperbólico, como as publicidades. Ele precisa confirmar a cada passo, com elementos variados (sons, desenhos), o que as imagens deveriam revelar por elas mesmas. Quando Amélie se apaixona, um coração aparece na tela, palpitando.
O recurso é irônico, claro, mas dá a medida da sua estratégia geral. Ela consiste em rejeitar o cinema como forma de enfrentamento com o tempo, com o adverso do mundo, com o novo da vida, e fazer do espectador uma peça do destino pré-fabricado do filme.

O Fabuloso Destino de Amélie Poulain
Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain   
Direção: Jean-Pierre Jeunet
Produção: França/Alemanha, 2001
Com: Audrey Tautou, Mathieu Kassovitz
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Cinearte, Jardim Sul e circuito


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