São Paulo, sexta-feira, 08 de fevereiro de 2002

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CINEMA

Os habitantes da solidão de Godard

Divulgação
"Elogio ao Amor", filme de Godard inédito no Brasil que está na mostra dedicada ao cineasta, exibida a partir de hoje no Cinesesc



Com 15 títulos, mostra apresenta, a partir de hoje, o caráter polifônico da obra do cineasta


TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

"Godard é solitário, mas muito povoado por dentro", diria Deleuze. "Sua solidão é múltipla, criativa, povoada não por sonhos, mas por atos, coisas, histórias e até pessoas."
O cinema de Jean-Luc Godard é esse povoamento, uma polifonia de vozes e gêneros que só encontra paralelo na multiplicidade dos grandes romancistas.
Godard dizia que se pusera a fazer filmes porque era incapaz de escrever romances, mas o seu cinema nunca deixará de ser o mais genuinamente romanesco.
Ele dizia que o cinema poupava-lhe o trabalho de imaginar e descrever as paisagens, mas é com Godard que a câmera se torna de fato, como sonhava um de seus mestres, Alexandre Astruc, uma caneta.
É Godard quem realiza o ideal do "cinema impuro" de André Bazin (outro grão-mestre da geração nouvelle vague), o sonho de "arte imaginária" de um tempo em que "os romances serão escritos diretamente em filmes".
Onde antes só se contava uma história, onde antes só se abordava um gênero (o mundo monológico do cinema clássico), Godard (elevando ao quadrado a índole dialógica do cinema moderno do pós-guerra) aborda cem.
Para ele, um filme deve ter de tudo, ser heterogêneo como os grandes romances. "O máximo de coisas no mínimo de tempo", dizia Glauber sobre os curtos-circuitos godardianos, "ação simultânea como Joyce, um encontro da sociologia com a ficção, da antropologia com a poesia, de Shakespeare com a science-fiction, de pintura com filosofia".
Do musical hollywoodiano ao drama conjugal rosseliniano em "Uma Mulher É uma Mulher", do melodrama social à enquete sociológica em "Viver a Vida", do romance político-existencialista ao thriller romântico-fulleriano em "O Pequeno Soldado", da cena doméstica à epopéia em "O Desprezo": a multiplicidade de gêneros e de categorias (a categorização da guerra em "Tempos de Guerra", as diversas categorias do romance de aventura em "O Demônio das 11 Horas") dos primeiros filmes de Godard é o fruto híbrido da intensa formação literária (dominada pelo romantismo alemão) e cinefílica de sua juventude (dos tempos em que era um dos "cinefilhos" da Cinemateca Francesa e articulista da "política dos autores" nos "Cahiers du Cinéma").

Leitura
Quando jovem, Godard, como testemunhou Truffaut, então seu amigo, era capaz de ler, durante uma noite, em alguma festa em casa de amigo, mais de 40 livros, atendo-se sempre ao começo e ao fim. Essa capacidade de apreensão, algo ligeira e fragmentária, mas sempre certeira em sua índole de aluno que não precisa entender inteiramente a lição para encontrar sempre as perguntas mais justas a fazer, está no cerne da polifonia godardiana.
A citação, antes de se tornar um método de criação para Godard (como atestam seus primorosos filmes recentes "Para Sempre Mozart" e "Elogio ao Amor"), foi o procedimento-síntese de uma geração que pretendeu ser a primeira a reler a história do cinema.
Lúdico-cinefílicos, os primeiros filmes de Godard, da "fase Anna Karina", transitam entre o cinema clássico hollywoodiano e o moderno neo-realista, por um périplo inequivocamente romântico, aquele anunciado por Godard em sua bela crítica de "A Time to Love and a Time to Die" (Douglas Sirk), que leva sempre seus personagens do amor à morte.

Estética
Em seu polêmico e censurado segundo longa, "O Pequeno Soldado", Godard quer fazer o "romance político" de sua geração, mas ainda não sabe se é de direita ou de esquerda.
Romântico-hedonista-desesperado como seu duplo "Pierrot le Fou", ele era ainda um ser estético tentando projetar, como o "pequeno soldado" (com quem compartilha o fato de ser um duplo desertor franco-suíço), a sua "idade da razão".
"Até aqui minha história tem sido a de um sujeito sem ideal. E amanhã?", perguntava-se Godard no começo do filme, encontrando a solução no canto leninista bradado por seu dúbio personagem: "A ética é o futuro da estética". Afinal, quem opta a fundo pela estética encontra, necessariamente, a ética no fim do caminho e vice-versa, antecipava Godard em sua crítica de "Moi, un Noir" (Jean Rouch).
Desenvolvendo, em sua fase político-esquerdista dos anos 70 (não contemplada na mostra; veja programação completa nesta página), uma pedagogia que aprofunda o hiato entre som e imagem já característico de seus primeiros filmes, Jean-Luc Godard refaz o caminho em sentido inverso, da ética à estética, antes de se consolidar, nas décadas seguintes, como o maior mestre da polifonia cinematográfica.



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