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DRAUZIO VARELLA
O juramento de Hipócrates
O exercício da medicina
por mais de 30 anos me concede a liberdade de aconselhar os
médicos mais jovens, mesmo
consciente da péssima reputação
de que os conselhos gratuitos gozam. É que o passar dos anos desperta nos mais velhos o desejo
compulsivo de recomendar aos
que ensaiam os primeiros passos
que sejam mais espertos e evitem
os erros que a ingenuidade nos fez
cometer.
Está na hora de acabar com o
ritual do juramento de Hipócrates nas cerimônias de formatura.
Para que manter essa tradição?
Os advogados, por acaso, juram
que defenderão a justiça? Engenheiros e arquitetos precisam jurar construir casas que não
caiam?
O juramento de Hipócrates está
tão antiquado que soa ridículo
ouvir jovens recém-formados repetirem-no feito papagaios. Que
me desculpem os tradicionalistas,
mas faz sentido jurar por Apolo,
Asclépios, Higéia e Panacéia não
fazer sexo com escravos quando
entramos na casa de nossos pacientes? Ou não usar o bisturi,
mesmo em casos de cálculos nos
rins? Ou prometer ensinar nossa
profissão gratuitamente aos filhos
de nossos professores, como Hipócrates preconizava? Por que não
estender esse privilégio a todos os
que estiverem dispostos a estudar? Existe visão mais corporativista?
Embora o juramento contenha
intenções filosóficas louváveis a
respeito da ética no relacionamento com as pessoas que nos
procuram em momentos de fragilidade física e psicológica, convenhamos que a visão social do pai
da medicina deixava muito a desejar. Ele era médico dos cidadãos
gregos e da aristocracia da vizinhança atraída por sua fama merecida; se alimentava alguma
simpatia pelo contingente de escravos que constituía a maior
parte da população da Grécia naquele tempo, soube disfarçá-la em
seus escritos.
Sem desmerecer o valor científico de Hipócrates, observador de
raro talento, que fugiu das explicações religiosas e sobrenaturais,
deixou descrições precisas de enfermidades desconhecidas na
época e abriu caminho para a
medicina baseada em evidências,
repetir o juramento escrito por ele
sem fazer menção ao papel do
médico na preservação da saúde e
na prevenção de doenças na comunidade é fazer vistas grossas à
responsabilidade social inerente à
profissão.
Por outro lado, aos olhos da sociedade, a mera existência de um
juramento solene dá a impressão
de que somos sacerdotes e de que
devemos dedicação total aos que
nos procuram, sem manifestarmos preocupação com aspectos
materiais como as condições de
trabalho ou a remuneração pelos
serviços prestados, para a felicidade de tantos empresários gananciosos.
Por causa desse pretenso sacerdócio, os médicos se submetem ao
absurdo medieval dos plantões de
24 horas, seguidos por mais 12 horas de trabalho continuado no
dia seguinte, em claro desprezo à
própria saúde e colocando em risco a dos doentes atendidos nesses
momentos de cansaço extremo.
Outros podem passar por isso
uma vez ou outra, mas nunca sistematicamente, todas as semanas, contrariando o mais elementar dos direitos trabalhistas: o de
dormir.
O que faz da medicina uma
profissão respeitável não são as
noites em claro nem o conteúdo
do que juramos uma vez na vida,
muito menos a aparência sacerdotal, mas o compromisso diário
com os doentes que nos procuram
e com a promoção de medidas para melhorar a saúde das comunidades em que atuamos.
Para cumprir o que a sociedade
espera de nós, é preciso lutar por
salários dignos, porque hoje é humanamente impossível ser bom
médico sem assinar revistas especializadas, ter acesso à internet,
frequentar congressos e estar alfabetizado em inglês, língua oficial
das publicações científicas. Num
campo em que novos conhecimentos são produzidos em velocidade vertiginosa, os esforços para
acompanhá-los devem fazer parte de um projeto permanente. Medicina não é profissão para aqueles que têm preguiça de estudar.
Apesar de absolutamente necessário, o domínio da técnica não
basta. O exercício da medicina
envolve a arte de ouvir as pessoas,
de observá-las, de examiná-las,
interpretar-lhes as palavras e de
discutir com elas as opções mais
adequadas. O tempo dos que impunham suas condutas sem dar
explicações, em receituários
cheios de garranchos, já passou e
não voltará.
Talvez a aquisição mais importante da maturidade profissional
seja a consciência de que a falta
de tempo não serve de desculpa
para deixarmos de escutar a história que os doentes contam. De
fato, muitos deles se perdem com
informações irrelevantes, embaralham queixas, sintomas e, se
lhes perguntamos quando surgiu
a dor nas costas, respondem que
foi no casamento da sobrinha.
Nesses casos, o médico competente é capaz de assumir com delicadeza o comando do interrogatório de forma a torná-lo objetivo e
exequível num tempo razoável.
Nessa área, sim, temos muito a
aprender com os velhos mestres.
Hipócrates acreditava que a arte
da medicina está em observar.
Dizia que a fama de um médico
depende mais de sua capacidade
de fazer prognósticos do que de
fazer diagnósticos. Queria ensinar que ao paciente interessa
mais saber o que lhe acontecerá
nos dias seguintes do que o nome
de sua doença. Explicar claramente a natureza da enfermidade e como agir para enfrentá-la
alivia a angústia de estar doente e
aumenta a probabilidade de adesão ao tratamento.
Muitos procuram nossa profissão imbuídos do desejo altruístico
de salvar vidas. Nesse caso, encontrariam mais realização no
Corpo de Bombeiros, porque a lista de doenças para as quais não
existe cura é interminável. Curar
é finalidade secundária da medicina, se tanto; o objetivo fundamental de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano.
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