São Paulo, quarta-feira, 08 de fevereiro de 2006

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AUDIOVISUAL/ANÁLISE

"Atos dos Homens" lança olhar à Baixada Fluminense após chacina

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Mais um documentário enfrenta o desafio de tocar em um dos assuntos mais delicados no Brasil de hoje: a violência urbana no Rio de Janeiro.
"Atos dos Homens", o novo longa de Kiko Goifman, foi exibido em forma inacabada no último Festival de Locarno na Suíça. Finalizado, será uma das participações brasileiras no Festival de Berlim, que começa no próximo dia 9. Está na mostra Fórum, dedicada a filmes experimentais.
O título é sugestivo. Na linha de outros trabalhos do diretor mineiro, como "Morte Densa", o desafio é o de ir além da denúncia, colocar o dedo na ferida sem apelar para o sensacionalismo fácil.
"Atos dos Homens" vem também na seqüência de inúmeros documentários e filmes de ficção, que, a partir de "Notícias de uma Guerra Particular", dirigido por João Moreira Salles, em 1999, trataram do universo do tráfico, do "movimento", do Estado e da mídia nos morros cariocas.
Um número crescente de cineastas e artistas plásticos busca criar formas de falar sobre violência sem contribuir para aumentar a ciranda do medo. Propostas autorais denunciam a complexidade do problema, fazendo aflorar uma pluralidade de vozes locais.
O projeto inicial de "Atos dos Homens", financiado por uma fundação alemã, tratava de sobreviventes de chacinas, como as da Candelária e de Vigário Geral, aberrações cometidas no passado recente pelas forças que deveriam garantir a ordem pública.
Diante da erupção de uma nova tragédia -o assassinato sumário de 29 cidadãos inocentes no dia 31 de março de 2005, na Baixada Fluminense-, o filme se voltou para a cobertura dos acontecimentos -no calor da hora. E chega a Berlim antes do evento documentado completar um ano.
Sob um sol tropical, o filme pesquisa paisagens da Baixada Fluminense. Em meio a rios, campo, charrete e cidade, busca revelar o cotidiano dos moradores dos municípios vizinhos à cidade maravilhosa, conhecidos pela truculência. Fora inúmeros nacos de carne manipulados para fazer churrasco, especialmente na casa de um policial aposentado, não há sangue nem lágrimas.
O filme não revela identidades. Os personagens estão nomeados nos créditos finais, mas não são apresentados quando falam. Uns aparecem no vídeo. Outros carecem de imagem. Suas falas em "off" são sugestivamente realçadas por uma tela branca brilhante. É como se a ausência de imagem pudesse de alguma maneira desarticular excessos bárbaros.
Ruídos sonoros constituem outro elemento relevante no documentário. Já bem adiantado no filme, o barulho de chuva forte comenta o ocorrido enquanto os nomes e idade dos mortos aparecem individualmente, branco no branco, no centro da tela.
A voz do diretor, de timbre grave característico, abre e fecha o filme (além de soar forte nas entrevistas), o que explicita ao menos um pouco das interlocuções. Destaque para o depoimento de um matador, face oculta pela tela branca e voz adulterada.
"Atos dos Homens" termina com a informação de que 11 policiais estão presos, acusados de participar do crime hediondo.
O cinema vem produzindo um volume significativo de depoimentos sobre a insegurança urbana. São filmes de intervenção. Uns mais poéticos que outros, eles provocam. Quem sabe esse repertório variado seja capaz de despertar algum senso de justiça em uma sociedade que parece incapaz de controlar o uso da força. Punições contundentes certamente seriam um bom começo.


Esther Hamburger é antropóloga e professora da ECA-USP

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