São Paulo, quarta-feira, 08 de fevereiro de 2006

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MARCELO COELHO

O garçom, o médico e o elefante

Se você tem raiva de médicos e hospitais (não é o meu caso, felizmente), recomendo que leia "Como Morrem os Pobres", um ensaio de George Orwell escrito em 1946 e finalmente traduzido para o português.
Orwell descreve sua experiência num hospital público parisiense, onde se internou com uma pneumonia, em 1929. Cerca de 60 doentes ficavam lado a lado, tão próximos que podiam se tocar com a mão. Eram acordados às cinco da manhã, tomavam uma sopa rala às oito e ficavam à espera do médico; este aparecia mais tarde, "alto, solene e de barba preta", acompanhado de um residente e de um bando de estudantes.
"Havia muitas camas pelas quais ele passava sem se deter dia após dia, às vezes seguido de gritos de súplica", conta Orwell. "Por outro lado, quem estava com alguma doença de que os estudantes queriam tomar conhecimento recebia muita atenção. No meu caso mesmo, um exemplo excepcionalmente admirável de ronco bronquial, às vezes uma dúzia de estudantes formava fila para ouvir o meu peito." Cito mais um trecho.
"De quando em quando, ao chegar a vez de um estudante se aproximar para nos manipular, ele tremia de emoção, como um garoto que afinal toca uma maquinaria cara. E então, ouvido após ouvido (...), pressionava nossas costas, dedos em revezamento batiam solene, mas desajeitadamente, e de nenhum deles partia uma palavra qualquer ou um olhar que mirasse nosso rosto."
Em páginas eficientes e secas, Orwell descreve a morte, as dores, a desumanização dos doentes -que parecem estar ali não para serem tratados, mas apenas para servir como ilustração didática para os estudantes. Os cuidados médicos reais -inclusive a anestesia- destinavam-se a pessoas de outra classe social, que estavam sendo atendidas longe dali.
Claro, haveria muito a escrever sobre as desigualdades no tratamento médico ainda hoje -que representam não apenas uma diferença entre conforto e desconforto mas entre morrer de uma doença ou sobreviver a ela.
Como acontece em outras áreas, o progresso nos tratamentos de saúde traz benefícios a todo mundo, mas também acentua as disparidades entre os muito ricos e o resto da humanidade. Os detalhes disso, cada vez mais técnicos, ficam naturalmente fora de nosso alcance de leigos -e não sei quantos de nós, na verdade, teriam estômago para se inteirar do que se passa.
George Orwell (1903-1950) não recuava diante de nenhum caso de sofrimento humano, e suas reportagens e ensaios têm a difícil virtude de não fazer literatura em torno da desgraça alheia. A falta de meias medidas, o pessimismo e a dureza alegórica de romances como "1984" e "A Revolução dos Bichos" parecem ganhar, na obra jornalística e autobiográfica de Orwell, um tom mais urbano e reflexivo, mais autocontrolado, sem perder certa aspereza característica da voz.
"Como Morrem os Pobres" talvez nem chegue a ser o mais impressionante dos textos de "Dentro da Baleia", coletânea organizada por Daniel Piza, que a Companhia das Letras acaba de publicar. Leiam-se, por exemplo, "Um EnforcaSDmento" e "O Abate de um Elefante", textos em que Orwell conta episódios de sua vida como policial do Império Britânico na Birmânia.
Certo dia, de manhã bem cedo, telefonaram para a delegacia: um elefante enfurecido estava destruindo tudo o que encontrava pela frente. "Eu não sabia o que poderia fazer", escreve Orwell, "mas, querendo verificar o que acontecia, montei num pônei e rumei para lá". Com um fuzil na mão, ele se vê de repente seguido por milhares de "nativos", diante de um elefante já tranqüilo, que pastava num arrozal.
"De repente me dei conta que eu deveria afinal abater o elefante. Esperavam isso de mim, e teria de fazê-lo; podia sentir as 2.000 vontades me apressando de forma irresistível."
Orwell prossegue: "Foi naquele momento, parado, com o fuzil nas mãos, que compreendi pela primeira vez o vazio, a futilidade do domínio dos brancos no Oriente. Ali estava eu, o branco com uma arma de fogo (...), aparentemente o ator principal da cena, mas, na realidade, apenas um fantoche absurdo empurrado de um lado para outro pela vontade daqueles rostos amarelos atrás de mim. Entendi naquele momento que quando o branco se torna tirano é sua própria liberdade que ele destrói (...) Porque é a condição de seu poder que passe a vida tentando impressionar os "nativos", e, assim, em todas as crises, terá de fazer o que os "nativos" esperam dele".
Não estamos longe, neste ensaio de 1936, das críticas que Sartre faria anos mais tarde ao colonialismo; nem do famoso garçom de café descrito em "O Ser e o Nada", cuja solicitude, cuja mímica, cuja habilidade em segurar a travessa com uma "temeridade de equilibrista" fazem parte de um jogo, de uma cena teatral. Aquele garçom de café, diz Sartre, representa o papel de um garçom, brinca de ser um garçom, e só assim realiza a sua condição de garçom.
Orwell e Sartre viveram num mundo marcado pelo colonialismo e pelo fascismo: a sensação do poder como uma farsa sinistra, da dominação política como um teatro opressivo e sangrento, sem dúvida está por trás de suas percepções. Talvez as coisas tenham mudado um pouco; a farsa continua, mas não parece haver rosto por trás das máscaras. Do marketing político à moda dos namoros virtuais, tudo faz com que categorias como "mentira" e "inautenticidade" pareçam velharias, palavras de um vocabulário sem sentido. Os textos de Orwell nos ajudam a imaginar como é uma pessoa verdadeira.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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