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MARCELO COELHO
O garçom, o médico e o elefante
Se você tem raiva de médicos e
hospitais (não é o meu caso,
felizmente), recomendo que leia
"Como Morrem os Pobres", um
ensaio de George Orwell escrito
em 1946 e finalmente traduzido
para o português.
Orwell descreve sua experiência
num hospital público parisiense,
onde se internou com uma pneumonia, em 1929. Cerca de 60
doentes ficavam lado a lado, tão
próximos que podiam se tocar
com a mão. Eram acordados às
cinco da manhã, tomavam uma
sopa rala às oito e ficavam à espera do médico; este aparecia mais
tarde, "alto, solene e de barba preta", acompanhado de um residente e de um bando de estudantes.
"Havia muitas camas pelas
quais ele passava sem se deter dia
após dia, às vezes seguido de gritos de súplica", conta Orwell. "Por
outro lado, quem estava com alguma doença de que os estudantes queriam tomar conhecimento
recebia muita atenção. No meu
caso mesmo, um exemplo excepcionalmente admirável de ronco
bronquial, às vezes uma dúzia de
estudantes formava fila para ouvir o meu peito." Cito mais um
trecho.
"De quando em quando, ao
chegar a vez de um estudante se
aproximar para nos manipular,
ele tremia de emoção, como um
garoto que afinal toca uma maquinaria cara. E então, ouvido
após ouvido (...), pressionava nossas costas, dedos em revezamento
batiam solene, mas desajeitadamente, e de nenhum deles partia
uma palavra qualquer ou um
olhar que mirasse nosso rosto."
Em páginas eficientes e secas,
Orwell descreve a morte, as dores,
a desumanização dos doentes
-que parecem estar ali não para
serem tratados, mas apenas para
servir como ilustração didática
para os estudantes. Os cuidados
médicos reais -inclusive a anestesia- destinavam-se a pessoas
de outra classe social, que estavam sendo atendidas longe dali.
Claro, haveria muito a escrever
sobre as desigualdades no tratamento médico ainda hoje -que
representam não apenas uma diferença entre conforto e desconforto mas entre morrer de uma
doença ou sobreviver a ela.
Como acontece em outras
áreas, o progresso nos tratamentos de saúde traz benefícios a todo
mundo, mas também acentua as
disparidades entre os muito ricos
e o resto da humanidade. Os detalhes disso, cada vez mais técnicos, ficam naturalmente fora de
nosso alcance de leigos -e não
sei quantos de nós, na verdade,
teriam estômago para se inteirar
do que se passa.
George Orwell (1903-1950) não
recuava diante de nenhum caso
de sofrimento humano, e suas reportagens e ensaios têm a difícil
virtude de não fazer literatura em
torno da desgraça alheia. A falta
de meias medidas, o pessimismo e
a dureza alegórica de romances
como "1984" e "A Revolução dos
Bichos" parecem ganhar, na obra
jornalística e autobiográfica de
Orwell, um tom mais urbano e reflexivo, mais autocontrolado, sem
perder certa aspereza característica da voz.
"Como Morrem os Pobres" talvez nem chegue a ser o mais impressionante dos textos de "Dentro da Baleia", coletânea organizada por Daniel Piza, que a Companhia das Letras acaba de publicar. Leiam-se, por exemplo, "Um
EnforcaSDmento" e "O Abate de
um Elefante", textos em que Orwell conta episódios de sua vida
como policial do Império Britânico na Birmânia.
Certo dia, de manhã bem cedo,
telefonaram para a delegacia: um
elefante enfurecido estava destruindo tudo o que encontrava
pela frente. "Eu não sabia o que
poderia fazer", escreve Orwell,
"mas, querendo verificar o que
acontecia, montei num pônei e
rumei para lá". Com um fuzil na
mão, ele se vê de repente seguido
por milhares de "nativos", diante
de um elefante já tranqüilo, que
pastava num arrozal.
"De repente me dei conta que eu
deveria afinal abater o elefante.
Esperavam isso de mim, e teria de
fazê-lo; podia sentir as 2.000 vontades me apressando de forma irresistível."
Orwell prossegue: "Foi naquele
momento, parado, com o fuzil
nas mãos, que compreendi pela
primeira vez o vazio, a futilidade
do domínio dos brancos no
Oriente. Ali estava eu, o branco
com uma arma de fogo (...), aparentemente o ator principal da cena, mas, na realidade, apenas um
fantoche absurdo empurrado de
um lado para outro pela vontade
daqueles rostos amarelos atrás de
mim. Entendi naquele momento
que quando o branco se torna tirano é sua própria liberdade que
ele destrói (...) Porque é a condição de seu poder que passe a vida
tentando impressionar os "nativos", e, assim, em todas as crises,
terá de fazer o que os "nativos" esperam dele".
Não estamos longe, neste ensaio
de 1936, das críticas que Sartre faria anos mais tarde ao colonialismo; nem do famoso garçom de
café descrito em "O Ser e o Nada",
cuja solicitude, cuja mímica, cuja
habilidade em segurar a travessa
com uma "temeridade de equilibrista" fazem parte de um jogo,
de uma cena teatral. Aquele garçom de café, diz Sartre, representa
o papel de um garçom, brinca de
ser um garçom, e só assim realiza
a sua condição de garçom.
Orwell e Sartre viveram num
mundo marcado pelo colonialismo e pelo fascismo: a sensação do
poder como uma farsa sinistra,
da dominação política como um
teatro opressivo e sangrento, sem
dúvida está por trás de suas percepções. Talvez as coisas tenham
mudado um pouco; a farsa continua, mas não parece haver rosto
por trás das máscaras. Do marketing político à moda dos namoros
virtuais, tudo faz com que categorias como "mentira" e "inautenticidade" pareçam velharias, palavras de um vocabulário sem sentido. Os textos de Orwell nos ajudam a imaginar como é uma pessoa verdadeira.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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