São Paulo, terça-feira, 08 de março de 2005

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FERNANDO BONASSI

O sertão vai virar mar

Está nos corações dos geólogos, nos registros dos sismógrafos e nas orações dos desgraçados: os primeiros, acadêmicos doutorados, não podem prever, já que não são videntes; os segundos, detalhistas, consistentes, são evidentes, mas só mostram o que se passou; os últimos, estes sim, serão colhidos de joelhos, enquanto cavam açudes de lágrimas com as garras das mãos em desespero. Esses coitados serão os alvejados, trocando um flagelo dos mais secos por um outro mais molhado e tão implorado sob o sol. A destruição, portanto, será proporcional à sede histórica dessa gente. Se Deus criou o mundo em seis dias, teve tempo de equilibrar bem as coisas? Quanto descansou no sétimo que não pensou no que fez? Ou pensou "daquele jeito"? Deus atinge seus fiéis atendendo a insanidade de suas preces sem medida? Pode ser... Afinal, se ele for mesmo fiel, como asseguram os evangélicos mais protestantes, estará apenas cumprindo os massacres que prometeu desde sempre em seus livros sagrados de auto-ajuda.
São ovelhas que preferem consolar-se com as idéias do pastor. É uma opção quase inconsciente a desse rebanho, já que os homens racionais nomeados e votados para resolver os problemas alheios sofrem dessa espécie de alheamento, preferindo manter desdentadas as crias de seus currais eleitorais. Quanto a estes locais, eles também serão submersos com todos os cavalos magros aos quais dão abrigo. Após cinco séculos de arreios, poderão descansar em paz. É a esses antigos papéis fantasiosos que se apegarão aqueles maravilhados demais para fugir das águas pesadas que desaguarão dos horizontes mais serenos. Quem não morrer da pancada, poderá morrer por estar vivo em meio a tanta morte contagiosa. Quanto à propriedade, o latifúndio continuará existindo, reservando aos fazendeiros a alternativa menos nociva do turismo subaquático e da pilhagem dos destroços afogados.
O que parece é que as placas tectônicas estão agitadas por causa desses turistas exploradores e pescadores indigentes; que a mãe Terra está enjoada dessas praias cobertas de "resorts for men" e "scort girls" que se vendem à preço de banana d'água passada. Foi na Ásia, mas podia ser aqui...
As azeitonas arrancadas dos drinques mais azedos poderiam fertilizar certas paradas, uma vez que ali as crianças prostitutas dizem que tudo dá. Claro que tudo aquilo tem seu preço. Principalmente a solução dessas misérias, e há de ser mais barato reconstruir um continente do que fazer com que ele se proteja da violência da indolência de nossa ignorância mais profunda. Será mesmo o fim do fundo. Não dará pé. Nem terá cabeça. Quem tiver correrá. Quem não tiver poderá nem ser identificado, já que os legistas estarão sempre perdendo para o tempo, que não pára mesmo, especialmente quando se trata de nossas carnes, que o chão molhadinho há de comer.
Não será surpresa se a caatinga for transformada numa espécie de restinga, onde os veranistas tirem fotos de flora e fauna surpreendentes. Será mesmo de surpresa. Por mais que quisessem avisar, ninguém acreditaria que qualquer coisa substanciosa pudesse mudar neste país que tem pressa de vencer e preguiça de repartir. A questão pode ser física, geofísica, astrofísica ou de menor importância para certos investidores, a menos que possam entender de uma vez por todas que não adianta a própria prosperidade se não estiverem mesmo vivos para ver belezas, ouvir música remasterizada ou comprar carros importados com catalisadores computadorizados.
Quanto a esses veículos de catástrofes sem regras e tragédias destituídas de heróis, a universidade até consegue dar o nome aos bois, mas jamais conseguiu tomá-los na unha, para lhes arranhar a reputação da cara, como merecem. Os mais ladrões são aqueles que roubam os tribunais da injustiça, pois têm cinco ou seis gerações de filhos garantidas por duas ou três obras fraudadas por seus "papais dos pobres".
Isso tudo pode dar num processo interminável, com imunidades compradas de um lado e sentenças vendidas do outro, tudo acobertado por advogados bem pagos cercados de mandatos e mandados por todos os lados, brigando com os bolsos da polícia aos tapas e beijos. Esses devaneios poderão ser censurados por comunistas do Estado do Direito, eles que até então trabalharam pela causa da liberdade de pensamento. O pensamento precisa ser alertado para o fato de que pode até sentir algo, mas será pouco. E muito rápido.
Os desavisados serão arrebanhados, misturados aos despojos, enrolados em trapos para serem enterrados mais além, muito longe do lugar em que nasceram, plantaram e colheram. Ali eles cresceram, mas "ali" não existirá mais. A força insistente e demente dessas águas baterá tanto nas pedras da estrada que as deixará ainda mais esburacadas, como um dedo fura-bolo apontando a pequenez das criaturas.
Pois é, meu irmão... Alá deve ser muito grande, se for mesmo verdade tudo o que os muçulmanos dizem que "Ele" é... Eu não sou nada disso para saber o que quer que seja, e é o meu espanto que tem tanta tendência de simplificar todas as coisas... Porque pode ser que, numa hora dessas, essas guerras patrocinadas pelas companhias de petróleo se tornem insignificantes, uma vez que todos os motores estarão enferrujados pela corrosão da maresia. O óleo mesmo desaparecerá das cozinhas, demonizado pelos médicos cardíacos financiados pela indústria farmacêutica. O Oriente Médio será reduzido ao mínimo antes que tenha tempo de achar que é o máximo. Então, como nos gloriosos tempos da guerra total, os estaleiros dominarão o mundo, fazendo tudo flutuar, especialmente aqueles nossos dejetos morais que não afundam mesmo.


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