|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FERNANDO BONASSI
O sertão vai virar mar
Está nos corações dos geólogos, nos registros dos sismógrafos e nas orações dos desgraçados: os primeiros, acadêmicos
doutorados, não podem prever, já
que não são videntes; os segundos, detalhistas, consistentes, são
evidentes, mas só mostram o que
se passou; os últimos, estes sim, serão colhidos de joelhos, enquanto
cavam açudes de lágrimas com as
garras das mãos em desespero.
Esses coitados serão os alvejados,
trocando um flagelo dos mais secos por um outro mais molhado e
tão implorado sob o sol. A destruição, portanto, será proporcional à sede histórica dessa gente.
Se Deus criou o mundo em seis
dias, teve tempo de equilibrar
bem as coisas? Quanto descansou
no sétimo que não pensou no que
fez? Ou pensou "daquele jeito"?
Deus atinge seus fiéis atendendo
a insanidade de suas preces sem
medida? Pode ser... Afinal, se ele
for mesmo fiel, como asseguram
os evangélicos mais protestantes,
estará apenas cumprindo os massacres que prometeu desde sempre em seus livros sagrados de auto-ajuda.
São ovelhas que preferem consolar-se com as idéias do pastor. É
uma opção quase inconsciente a
desse rebanho, já que os homens
racionais nomeados e votados
para resolver os problemas
alheios sofrem dessa espécie de
alheamento, preferindo manter
desdentadas as crias de seus currais eleitorais. Quanto a estes locais, eles também serão submersos com todos os cavalos magros
aos quais dão abrigo. Após cinco
séculos de arreios, poderão descansar em paz. É a esses antigos
papéis fantasiosos que se apegarão aqueles maravilhados demais
para fugir das águas pesadas que
desaguarão dos horizontes mais
serenos. Quem não morrer da
pancada, poderá morrer por estar
vivo em meio a tanta morte contagiosa. Quanto à propriedade, o
latifúndio continuará existindo,
reservando aos fazendeiros a alternativa menos nociva do turismo subaquático e da pilhagem
dos destroços afogados.
O que parece é que as placas tectônicas estão agitadas por causa
desses turistas exploradores e pescadores indigentes; que a mãe
Terra está enjoada dessas praias
cobertas de "resorts for men" e
"scort girls" que se vendem à preço de banana d'água passada. Foi
na Ásia, mas podia ser aqui...
As azeitonas arrancadas dos
drinques mais azedos poderiam
fertilizar certas paradas, uma vez
que ali as crianças prostitutas dizem que tudo dá. Claro que tudo
aquilo tem seu preço. Principalmente a solução dessas misérias, e
há de ser mais barato reconstruir
um continente do que fazer com
que ele se proteja da violência da
indolência de nossa ignorância
mais profunda. Será mesmo o fim
do fundo. Não dará pé. Nem terá
cabeça. Quem tiver correrá.
Quem não tiver poderá nem ser
identificado, já que os legistas estarão sempre perdendo para o
tempo, que não pára mesmo, especialmente quando se trata de
nossas carnes, que o chão molhadinho há de comer.
Não será surpresa se a caatinga
for transformada numa espécie
de restinga, onde os veranistas tirem fotos de flora e fauna surpreendentes. Será mesmo de surpresa. Por mais que quisessem
avisar, ninguém acreditaria que
qualquer coisa substanciosa pudesse mudar neste país que tem
pressa de vencer e preguiça de repartir. A questão pode ser física,
geofísica, astrofísica ou de menor
importância para certos investidores, a menos que possam entender de uma vez por todas que não
adianta a própria prosperidade
se não estiverem mesmo vivos para ver belezas, ouvir música remasterizada ou comprar carros
importados com catalisadores
computadorizados.
Quanto a esses veículos de catástrofes sem regras e tragédias
destituídas de heróis, a universidade até consegue dar o nome aos
bois, mas jamais conseguiu tomá-los na unha, para lhes arranhar a
reputação da cara, como merecem. Os mais ladrões são aqueles
que roubam os tribunais da injustiça, pois têm cinco ou seis gerações de filhos garantidas por duas
ou três obras fraudadas por seus
"papais dos pobres".
Isso tudo pode dar num processo interminável, com imunidades
compradas de um lado e sentenças vendidas do outro, tudo acobertado por advogados bem pagos cercados de mandatos e mandados por todos os lados, brigando com os bolsos da polícia aos tapas e beijos. Esses devaneios poderão ser censurados por comunistas do Estado do Direito, eles que
até então trabalharam pela causa
da liberdade de pensamento. O
pensamento precisa ser alertado
para o fato de que pode até sentir
algo, mas será pouco. E muito rápido.
Os desavisados serão arrebanhados, misturados aos despojos,
enrolados em trapos para serem
enterrados mais além, muito longe do lugar em que nasceram,
plantaram e colheram. Ali eles
cresceram, mas "ali" não existirá
mais. A força insistente e demente
dessas águas baterá tanto nas pedras da estrada que as deixará
ainda mais esburacadas, como
um dedo fura-bolo apontando a
pequenez das criaturas.
Pois é, meu irmão... Alá deve ser
muito grande, se for mesmo verdade tudo o que os muçulmanos
dizem que "Ele" é... Eu não sou
nada disso para saber o que quer
que seja, e é o meu espanto que
tem tanta tendência de simplificar todas as coisas... Porque pode
ser que, numa hora dessas, essas
guerras patrocinadas pelas companhias de petróleo se tornem insignificantes, uma vez que todos
os motores estarão enferrujados
pela corrosão da maresia. O óleo
mesmo desaparecerá das cozinhas, demonizado pelos médicos
cardíacos financiados pela indústria farmacêutica. O Oriente Médio será reduzido ao mínimo antes que tenha tempo de achar que
é o máximo. Então, como nos gloriosos tempos da guerra total, os
estaleiros dominarão o mundo,
fazendo tudo flutuar, especialmente aqueles nossos dejetos morais que não afundam mesmo.
Texto Anterior: Semana da mulher: Especias revelam mulheres da história Próximo Texto: Panorâmica - Arte: Tomie Ohtake tem debate sobre design Índice
|