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Crítica/"O Diabo Mesquinho"
Escritor pouco conhecido cria mundo sinistro de sabor popular
CRISTOVÃO TEZZA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Na literatura russa da
segunda metade do século 19, o movimento
simbolista exerceu um papel
precursor importante, abrindo
caminho para o experimentalismo dos célebres formalistas
que, no início do século 20,
criariam parte da pauta dos estudos literários dominantes até
hoje. O objetivo do simbolismo
era "libertar" a palavra de sua
suposta escravidão referencial,
dando-lhe vida própria (ela é
um "símbolo"); ao mesmo tempo, ela deveria revelar valores
mais profundos da realidade
-e aqui está o liame que o movimento mantém com a vida
ideológica. Assim, o artista trabalha a "natureza construtiva"
da palavra (como objeto gráfico
e sonoro), enquanto procura
extrair dela sua dimensão arquetípica.
O romance "O Diabo Mesquinho", do pouco conhecido
Fiódor Sologub (1863-1927),
lançado agora numa edição
bem cuidada, é uma bela e rara
amostra em prosa desse movimento. É uma narrativa simples, quase uma fábula de costumes: numa cidade pequena, o
professor solteirão Peredónov
mora com sua prima Várvara,
que deseja se casar com ele. Ao
mesmo tempo, Peredónov é
disputado por muitas mulheres, e hesita entre elas. Para garantir seu posto, a prima falsifica uma carta de uma princesa
que garantiria ao professor o
desejado cargo de inspetor, e
por esse meio ilícito garante o
casamento.
Ao longo desse fio ingênuo de
sabor popular, entretanto, Sologub cria um mundo sinistro e
aterrador, comandado por forças incontroláveis, em que sentimos a tensão de todas as linhas de força de um momento
de transição -uma transição
estética, em que o clássico realismo psicológico e social de
monstros como Dostoiévski e
Tolstói começa a perder o seu
eixo de referência concreto
(substituído momentaneamente pela mística difusa dos
mitos e dos símbolos), e também uma transição política, de
uma Rússia encarquilhada
prestes a explodir.
Bajuladores bêbados
O pano de fundo é um mundo
opressivo de funcionários públicos acovardados diante de
um poder invisível que os massacra do nada, uma legião de
desocupados e bajuladores bêbados, e um agoniante cotidiano cuja única lei é a onipresente violência física.
Peredónov, que começa a se
construir por traços psicológicos em estado bruto, é um pequeno canalha, de uma inacreditável mesquinharia, afundado num jogo de interesses miseráveis que acaba por destruí-lo. Em vários momentos transfigura-se em um arquétipo do
mal, mas sempre sentimos no
personagem o eco satírico e
realista de seus antecessores,
de Nicolai Gogol (do clássico "O
Capote") a Dostoiévski, com
suas "vozes do subterrâneo":
"Em todos os lugares, moravam
pessoas estranhas a ela, inóspitas. Para Peredónov, talvez algumas estivessem tramando
contra ele".
Enlouquecimento
O progressivo enlouquecimento de Peredónov vai se
criando em torno de um mundo carnavalesco, irracional, de
um pessimismo delirante e
transcendente, fora do alcance
da ação humana.
Todos os elementos populares que pontuam a narrativa,
das festas e do riso fácil, da dança e dos mistérios insondáveis,
aparecem em fragmentos, símbolos de um mundo que irrompe por conta própria.
A contrapartida luminosa do
livro -o lirismo erótico e sutilmente transgressor da relação
entre o adolescente Sacha e a
sedutora Ludmila ("Como é absurdo que os meninos não andem nus!")- abre o romance
para o século 20. O simbolismo
de Sologub se encontra com o
mundo dos sonhos de Sigmund
Freud.
CRISTOVÃO TEZZA é escritor, autor do romance "O Filho Eterno" (Record), entre outros.
O DIABO MESQUINHO
Autor: Fiódor Sologub
Tradução: Moissei Mountian
Editora: Kalinka
Quanto: R$ 44,90 (392 págs.)
Avaliação: ótimo
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