São Paulo, terça-feira, 08 de março de 2011

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"Carmen" vai ao cinema

Versão em 3D da ópera de Bizet, que estreia no sábado no país, ilustra flerte das companhias com a tecnologia para se aproximar do público

LAURA BATTLE
DO "FINANCIAL TIMES"

Ópera. A palavra não é muito mais que um termo de responsabilidade. Ninguém pode afirmar que represente uma coisa ou outra, já que, sendo o plural da palavra latina "opus" (que significa "obra" ou "trabalho"), justifica uma arte miscigenada.
Historicamente, a ópera apresentou uma síntese sedutora de poesia, dança, música, arte e arquitetura. Assim, sua qualidade mais duradoura talvez seja seu ávido consumo de outros gêneros.
Mais recentemente, a ópera vem flertando com o cinema. Além de incentivar o uso de técnicas de vídeo no teatro, companhias têm convidado cineastas para dirigir produções. Se alguns desses projetos foram empreendimentos artísticos nobres, outros não passaram de tentativas crassas de levar um elemento "descolado" à ópera.
Do outro lado, a história muda: a ópera teve pouca representação no cinema, em grande medida, porque foi superada pelo próprio cinema como modo principal de expressão cultural.

PANO DE FUNDO
Tirando exceções notáveis, como "A Flauta Mágica" (1975), de Ingmar Bergman, a ópera tem simplesmente sido explorada pelos filmes comerciais para criar panos de fundo emocionais.
Em "Wall Street" (1987), o corretor de ações Bud Fox canta, acompanhando a ária da festa de "Rigoletto", contra um pano de fundo de excessos dos anos 1980; em "Uma Linda Mulher" (1990), a garota de programa vivida por Julia Roberts se encanta com a cortesã Violetta quando passa uma noite na ópera.
Mas os avanços multimídia dos últimos dez anos incentivaram uma fusão ampla de gêneros culturais e, hoje, a ópera desfruta de uma relação dinâmica com o cinema.
Dois projetos ainda inéditos da Royal Opera House e da English National Opera demonstram até que ponto as companhias estão dispostas a investir na tendência.
A English National Opera vai apresentar uma versão ao vivo em 3D de "Lucrezia Borgia", a ser exibida em cinemas seletos do Reino Unido. O espetáculo vai fundir a performance apresentada no palco e elementos de vídeo.
Enquanto isso, a Royal Opera House trabalhou com a RealD para criar um filme em 3D pré-gravado da produção de "Carmen" que já faz parte de seu repertório.
O Metropolitan Opera já definiu padrões elevados. Desde 2007, o teatro de ópera de Nova York vem transmitindo suas produções ao vivo, via satélite, para cinemas espalhados pelo mundo, com grande sucesso.
Glyndebourne é outro teatro de ópera que desenvolveu seu perfil cinematográfico; no início do verão britânico, a companhia vai transmitir "L'elisir d'amore", "Falstaff", "Don Giovanni" e "The Fairy Queen" em cinemas do Reino Unido, França, Itália, Espanha, Israel e Japão.
Está claro que a chamada "barreira linguística", à qual frequentemente é atribuída a inacessibilidade da ópera, é também uma das explicações de seu apelo internacional. Além de formar plateias em todo o mundo, contudo, a esperança é que essas exibições atraiam um público cada vez maior nos países de origem e, possivelmente, até mesmo restaurem o lugar da ópera na cultura popular.

ÓPERA POPULAR
Não é coincidência o fato de a Royal Opera House e a ENO estarem lançando suas iniciativas 3D com clássicos italianos do século 19.
Não apenas esse repertório acabou por representar uma época em que a ópera era algo do povo, como também muitos de seus temas ingressaram na consciência do grande público por meio das paradas de sucessos eruditos, ringtones de celulares e comerciais de massas.
O material promocional da "Carmen" em 3D, que inclui trailers sensuais ("Carmen" sempre atraiu os "virgens" com a promessa de sexo) e promessas de outro tipo ("um evento musical memorável") procura contrariar o rótulo de arte elevada que acompanha a ópera.
Uma mudança de contexto vai beneficiar a ópera de várias maneiras. Aqueles argumentos gastos -que a ópera é cara para se produzir, que as tramas são sexistas, as cenas, improváveis, o diálogo, carente de sentido e as atuações, estereotipadas- ganham destaque na telona.
Ao mesmo tempo, falhas serão expostas. A produção de "Carmen" da Royal Opera House, dirigida por Francesca Zambello, é um exercício de realismo excessivo, com figurinos detalhados, cenas de multidão e todo um zoológico de animais vivos. É um estilo que pode ser descrito como cinematográfico, mas é justamente esse o problema.
É impossível deixar de traçar comparações com o cinema e observar onde a ópera deixa a desejar. Julian Napier, diretor do filme em 3D, diz que nunca teve a intenção de negar que fosse uma ópera filmada. "Eu quis preservar durante todo o tempo a noção de que é uma experiência ao vivo".
Outra consideração importante é o efeito que a filmagem tem sobre os cantores. A ópera sempre exigiu que fossem artísticos e tivessem desempenho físico atlético, mas agora parecem artistas extremos dos quais se exige não apenas que cantem, e, frequentemente, dancem, mas também que revelem atuação que resista ao escrutínio em close-up.
Christine Rice, a mezzo-soprano britânica que faz Carmen no filme, diz que as câmeras não a intimidaram. Alguns cantores, contudo, com certeza farão objeção aos aspectos menos atraentes da performance ao vivo serem registrados para a posteridade -gotas de saliva e transpiração etc.
Para as companhias de ópera, entretanto, a passagem para o cinema traz muitas vantagens. Um dos fatores chaves é o controle artístico e comercial. No passado, as companhias de ópera autorizavam a transmissão pela TV de suas produções e abriam mão do direito de administrar o material.
Agora, cada vez mais, elas vêm buscando reconquistar o controle sobre seu trabalho e explorar plenamente a gama de mídias à disposição.
Em 2007, a Royal Opera House adquiriu o maior selo de DVDs clássicos, Opus Arte, e, desde então, a companhia o vem usando para promover gravações de suas próprias produções e outras.
É claro que quaisquer mudanças no longo prazo dependerão do retorno financeiro. Se as exibições em cinemas continuarem a atrair um público crescente, as companhias lhes dedicarão mais energia e criatividade.
Podemos apenas especular sobre a influência que isso exercerá sobre o futuro da própria ópera, mas não há dúvida de que a discussão secular sobre letra e música -"prima la musica" ou "prima le parole"?- está começando a parecer gasta.

Tradução de CLARA ALLAIN


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