|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Sombras e outros tons de cinza no "ponto zero"
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Começou em Londres. O fotógrafo Rankin me disse que
iria estar em Nova York para fotografar tudo e que eu não me preocupasse. Como é agitado e um
pouco "dazed and confused" (como a revista que edita e que leva o
nome da música do Led Zeppelin), fingi que não entendi. Corta.
Dois dias depois, ou seja, há
dois domingos, em Paris, Peter
Brook me perguntava: "você vai
estar lá?" "Lá onde?", eu respondia com certa perplexidade fingida. O rabino Henry Sobel sabe
muito bem que quando dois judeus se olham nos olhos durante
muito tempo, ou choram copiosamente ou caem na gargalhada.
Brook e eu caímos na gargalhada.
"Avise para Kate que eu não conseguirei estar lá de jeito nenhum",
foi seu recado final. Corte.
Rio de Janeiro na semana passada. Estou almoçando com Cacá
Diegues e checando os números
estrondosos de bilheteria de
"Deus É Brasileiro" e, de repente,
Cacá me diz que quer dirigir teatro. Mas não é só isso. Vindo recentemente daqui de Nova York,
ele me vem com a seguinte frase:
"A minha esperança é que os hippies voltem a existir". Fiquei com
a pulga atrás da orelha. Será que o
Cacá também sabia? Corte.
Assim que desembarquei aqui,
fui checar a caixa postal e havia
um recado do produtor do Richard Foreman. "Sr. Thomas, por
favor esteja no teatro da St. Marks
Church às cinco da tarde de sábado para que vocês possam combinar as últimas coordenadas."
Agora explico. Um happening
acontece assim. Ninguém pode
saber. Ou melhor, poucas pessoas
devem saber. O próprio título
mudou várias vezes numa semana, passando de "15 X Fear" até
"Fire Exit" e, finalmente, terminando como "Power Peace Exit".
O evento era para ter acontecido
no "ground zero" (ponto zero), o
buraco onde ficavam as torres do
WTC. Mas a Port Authority of
New York and New Jersey negou
o terreno para um happening artístico pacifista. Os vários diretores convidados dos inúmeros núcleos participantes (eu, entre eles)
usariam pseudônimos e nenhum
nome de companhia poderia ser
reconhecível. Semelhanças com a
tal época hippie à qual Cacá estava
se referindo no tal almoço.
Domingo. Sou acordado às quatro da manhã. "Esteja na portaria
daqui a meia hora por favor."
"Vamos lá", me dizia uma voz de
um "usher" na van que me pegou.
Descemos em Tribeca. Comecei a
reparar que já na esquina da Duane Street com Wedt Broadway havia dezenas de corpos cinzas deitados no chão. Alguns fotógrafos
e cinegrafistas avisados registravam tudo. Nenhum público. De
repente, chegam as ambulâncias e
a polícia. O happening está formado.
Os corpos se levantam e uma
certa coreografia é performada
em torno dos paramédicos. Ninguém sabe se ri. A polícia esboça
um certo sorriso e vai embora. Na
melhor tradição de Jean Jacques
Lebel e Julian Beck, o verdadeiro
happening acontece por ser um
ato teatral solitário que se liberta
do teatro e pronto.
E isso aconteceu. Era um ato
contra a guerra. O pseudônimo libertou-nos de nossos egos. Esses
egos apodrecem o teatro assim
como apodrecem a política.
Durou 40 minutos, mas ficará
na história como poucas coisas ficarão. Ainda dava para sentir as
almas que pairam em volta do
WTC. Os corpos cinzas estavam
lá pedindo a Bush que a revanche
não é o caminho certo.
"Power Peace Exit" foi um testamento de que os políticos não nos
ouvem mais e de que viramos
sombras e outras variações de
tons cinzentos.
Gerald Thomas é autor e diretor teatral
Texto Anterior: Primeira-Dama: Gafe zero Próximo Texto: Panorâmica - Arquitetura: Dinamarquês ganha prêmio Pritzker Índice
|