São Paulo, quinta-feira, 08 de abril de 2004

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BIENAL DO LIVRO

Em nome do pai

Divulgação
Cena do filme "Pai Patrão" (1976), dos irmãos Taviani, baseado no livro em que Gavino Ledda conta histórias de sua infância no sul da Itália; obra será relançada na Bienal do Livro, em SP, neste mês



Marco da literatura italiana do pós-guerra, "Pai Patrão", no qual Gavino Ledda cria um idioma próprio para contar histórias de sua infância, será relançado com nova tradução

Em entrevista, o escritor italiano fala sobre o processo de criação de sua obra, do não-convencionalismo de sua escrita e do filme que levou seu livro ao cinema



MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Do analfabetismo para a prosa de vanguarda. Assim é a trajetória do escritor italiano Gavino Ledda, 64, que foi arrancado da escola pelo pai autoritário, passou a infância como pastor de ovelhas em sua Sardenha natal e só retomou os estudos em idade adulta.
Essa história de superação é contada em "Pai Patrão", cuja nova tradução (a primeira foi publicada no fim dos anos 70) a editora Berlendis & Vertecchia lança nesta Bienal do Livro (que acontece entre os dias 15 e 25 de abril), com a presença do autor no Salão de Idéias (dia 21 de abril, às 19h).
Marco da literatura italiana do pós-guerra, o livro faz uma dolorosa aproximação entre repressão patriarcal e exploração econômica, mas é também uma parábola sobre o poder reparador da literatura. A edição inclui textos mais recentes e experimentais, como "Recanto", em que Gavino Ledda faz um cruzamento de radicais e sufixos do italiano e do sardo para criar um idioma próprio, repleto de neologismos, que ele chama de "língua pluridimensional".
Leia a seguir a entrevista que Ledda deu à Folha de sua casa, na aldeia de Siligo, onde vive com seu "pai patrão", hoje com 97 anos e orgulhoso do filho que se tornou escritor.
 

Folha - A sua experiência pessoal, contada em "Pai Patrão", é comparável à vivência de outros filhos de camponeses italianos dos anos 50?
Gavino Ledda -
A primeira parte do livro e da minha vida é semelhante à de outras crianças. Embora fosse um pouco excepcional que um menino tão pequeno trabalhasse no campo, pode-se dizer que a experiência de um pastor sardo é igual à de Gavino.
Já a segunda parte do livro é totalmente diferente, porque Gavino descreve a experiência dos pastores a partir de dentro, a partir do vivido. Nesse sentido, o livro tem algo de único, e não apenas para a Sardenha: eu escrevi uma ilíada jamais escrita, uma ilíada sem sangue: eu não era Aquiles e meu adversário não era Heitor. Era eu contra mim mesmo, e a muralha a ser superada não era o escudo ou a espada do outro, mas a ignorância e a história ignara dos homens.

Folha - Seu livro é uma crítica da relação essencial que existe entre os poderes do pai e do patrão?
Ledda -
Na moral agropastoral do pai patrão, do "pater familias", o filho faz parte do pecúnio, é como os animais: o pai dispõe dele como quer, tem plenos direitos sobre o filho. Existe a relação pai-filho e a relação pai-patrão. Uma outra coisa é a relação patrão-menino (que jamais deveria existir). A poesia me ajudou a superar esses três espectros.

Folha - A literatura foi uma forma de o pequeno pastor não virar patrão?
Ledda -
Sim. Tanto o romance quanto o filme (dos irmãos Taviani) foram vistos em chave "patronal", como história do pai, e não do filho. O que importa é que Gavino se rebela, se recusa a ser servo dos outros, mas também se recusa a se tornar um patrão. Gavino é um garoto que quer dizer a todos os outros meninos da Terra: podemos mudar a nós mesmos e podemos mudar um pouco nossos pais. Meu segundo livro, "Lingua di Falce" (Língua de Foice, de 1977), traz justamente este tema: o imperativo de não se tornar patrão.

Folha - Qual a sua avaliação do filme "Pai Patrão", dirigido pelos irmãos Taviani?
Ledda -
Só os Taviani podiam fazê-lo na Itália daquele momento, pois tinham uma poética da utopia. Para eles, o romance era um pedaço de utopia que se tornava realidade. Mas o filme tem um ponto de vista externo -e não poderia ser diferente.
Já o romance foi escrito de dentro do ovil. Espero um dia filmar o meu próprio "Pai Patrão", interpretando meu pai.

Folha - Quando pequeno, o sr. já acreditava que seria escritor?
Ledda -
Não. Posso ter pensado nisso ocasionalmente, assim como podia sonhar em ser músico ou campeão de ciclismo. Mas são fantasias de menino. Foi só depois de me diplomar que tomei a decisão de escrever. Normalmente se nasce poeta e depois se tem a experiência como pastor, como mineiro etc. Fiz o percurso contrário. Era preciso ter sido pastor por 20 anos para escrever "Pai Patrão". Foi graças a essa experiência que me tornei um escritor "rochoso", que procura esculpir o vento.

Folha - "Pai Patrão" é um romance naturalista. Já "Recanto" é uma obra "experimental", dentro do que o sr. denomina "língua pluridimensional". A fome de palavras se transformou em desejo de criar uma língua pessoal?
Ledda -
Sem o vôo dos irmão Wright, a aeronáutica seria outra coisa. Da mesma maneira, "Recanto" é o primeiro vôo da mente numa língua pluridimensional. Aristóteles definiu a língua escrita como convenção. Mas, assim como um enunciado científico só é válido até que chegue a prova contrária, a língua pluridimensional não se limita a reproduzir a convenção. Ela é um salto no qual o escritor toma os radicais dos verbos ou os sufixos das palavras para transformá-las, recriá-las, dando asas à língua.


PAI PATRÃO/RECANTO. Autor: Gavino Ledda. Tradução: Lilioana Laganá e Ivan Neves Marques Jr. Editora: Berlendis & Vertecchia. Quanto: a definir (322 págs.).


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