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"VIOLAÇÃO DE PRIVACIDADE"
Ficção sobre gravação de memória escapa da futilidade, mas tropeça em crise pessoal
Estreante ousa com manipulação da realidade
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Desde que as incertezas da
psique cederam lugar, no
imaginário americano, aos apelos
da ciência positiva, a memória
(ou a perda de) se tornou uma espécie de xodó dos roteiristas americanos. "Violação de Privacidade" não escapa a essa regra.
Não que a ciência positiva tenha
feito lá grande coisa pela memória
ou desmemória do mundo. A psicanálise, afinal, oferecia-lhe uma
explicação -aceite-se ou não, é
outra história. A ciência busca
menos explicações do que localizações. O centro da memória é
aqui, o da felicidade acolá etc.
Há embutida nessa busca de locais uma negação geral das ciências sociais: se sabemos que fulano é um potencial assassino por
causas genéticas, por exemplo,
não há muito mais o que dizer a
respeito e podemos esquecer a
pobreza, os desajustes de natureza cultural etc. O gene explica tudo. Ou parece fazê-lo.
Esse triunfo da ciência abriu as
portas do cinema para todo tipo
de desmemoriado. Também
abriu as portas para a imaginação
laboriosa e não raro estéril de roteiristas. É desse tipo de futilidade
que se deve, de início, absolver o
filme do estreante Omar Naïm.
Nesta ficção científica trata-se
da hipótese fantástica de um processo de gravação da memória.
Como pode ser gravada, a memória pode ser modificada. Como
pode ser modificada, existem para essa tarefa os montadores (ou
editores, como prefere o tradutor
do filme).
E pronto. Quase inadvertidamente deixamos o terreno brumoso das memórias que se perdem e se acham ao sabor da necessidade dos roteiros e entramos
no do cinema propriamente. Cinema que não deixa de ser uma
memória coletiva.
Todos conhecemos a história da
foto de Lênin, que tinha Trótski
ao seu lado. Para melhor adequar-se à simbologia do período stalinista, a imagem de Trótski foi
apagada.
Até alguns anos atrás, essas operações de reescrita da história
eram tidas como de exclusividade
de comunistas e gente assim. Sabemos que não são. Toda escrita
consiste em afirmar umas tantas
coisas e omitir outras. No cinema
essa operação é conhecida como
montagem.
A montagem é o coração do cinema. Ela comporta a possibilidade de associar duas imagens e,
com isso, criar um significado.
Mas também toda a manipulação
da realidade passa por ela. O bem
e o mal do cinema estão na montagem.
É mais ou menos esse o drama
do montador (ou editor) de memórias Alan Hackman (Robin
Williams). É pago para fazer com
que as pessoas lembrem o que
querem lembrar, ou seja, tenham
a vida que quiseram ter. Ou ainda
para editar essas memórias (portanto elas são algo com existência
objetiva, segundo o filme) para
efeito de belas cerimônias fúnebres, retirando dali tudo o que de
desagradável pudesse haver.
Ora, toda essa premissa interessantíssima é toldada pela figura
do próprio Hackman, cujas lembranças entram em causa, provocam uma grave crise pessoal, desviam o foco para seu passado e
acabam por criar um segundo e
bem menos interessante filme
(com a desvantagem de ser um
tanto confuso e com o mérito de
ser bem articulado ao todo).
Animador na premissa, o filme
em vários momentos parece não
sustentar a ousadia de princípio.
Um problema menor: em todo
caso, trata-se de um filme com algo a dizer -coisa rara na indústria cultural, setor de imagem.
Violação de Privacidade
The Final Cut
Direção: Omar Naïm
Produção: EUA, 2004
Com: Robin Williams, Jim Caviezel, Mira
Sorvino
Quando: a partir de hoje nos cines
Bristol, Iguatemi e circuito
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