São Paulo, sexta-feira, 08 de abril de 2005

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"VIOLAÇÃO DE PRIVACIDADE"

Ficção sobre gravação de memória escapa da futilidade, mas tropeça em crise pessoal

Estreante ousa com manipulação da realidade

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Desde que as incertezas da psique cederam lugar, no imaginário americano, aos apelos da ciência positiva, a memória (ou a perda de) se tornou uma espécie de xodó dos roteiristas americanos. "Violação de Privacidade" não escapa a essa regra.
Não que a ciência positiva tenha feito lá grande coisa pela memória ou desmemória do mundo. A psicanálise, afinal, oferecia-lhe uma explicação -aceite-se ou não, é outra história. A ciência busca menos explicações do que localizações. O centro da memória é aqui, o da felicidade acolá etc.
Há embutida nessa busca de locais uma negação geral das ciências sociais: se sabemos que fulano é um potencial assassino por causas genéticas, por exemplo, não há muito mais o que dizer a respeito e podemos esquecer a pobreza, os desajustes de natureza cultural etc. O gene explica tudo. Ou parece fazê-lo.
Esse triunfo da ciência abriu as portas do cinema para todo tipo de desmemoriado. Também abriu as portas para a imaginação laboriosa e não raro estéril de roteiristas. É desse tipo de futilidade que se deve, de início, absolver o filme do estreante Omar Naïm.
Nesta ficção científica trata-se da hipótese fantástica de um processo de gravação da memória. Como pode ser gravada, a memória pode ser modificada. Como pode ser modificada, existem para essa tarefa os montadores (ou editores, como prefere o tradutor do filme).
E pronto. Quase inadvertidamente deixamos o terreno brumoso das memórias que se perdem e se acham ao sabor da necessidade dos roteiros e entramos no do cinema propriamente. Cinema que não deixa de ser uma memória coletiva.
Todos conhecemos a história da foto de Lênin, que tinha Trótski ao seu lado. Para melhor adequar-se à simbologia do período stalinista, a imagem de Trótski foi apagada.
Até alguns anos atrás, essas operações de reescrita da história eram tidas como de exclusividade de comunistas e gente assim. Sabemos que não são. Toda escrita consiste em afirmar umas tantas coisas e omitir outras. No cinema essa operação é conhecida como montagem.
A montagem é o coração do cinema. Ela comporta a possibilidade de associar duas imagens e, com isso, criar um significado. Mas também toda a manipulação da realidade passa por ela. O bem e o mal do cinema estão na montagem.
É mais ou menos esse o drama do montador (ou editor) de memórias Alan Hackman (Robin Williams). É pago para fazer com que as pessoas lembrem o que querem lembrar, ou seja, tenham a vida que quiseram ter. Ou ainda para editar essas memórias (portanto elas são algo com existência objetiva, segundo o filme) para efeito de belas cerimônias fúnebres, retirando dali tudo o que de desagradável pudesse haver.
Ora, toda essa premissa interessantíssima é toldada pela figura do próprio Hackman, cujas lembranças entram em causa, provocam uma grave crise pessoal, desviam o foco para seu passado e acabam por criar um segundo e bem menos interessante filme (com a desvantagem de ser um tanto confuso e com o mérito de ser bem articulado ao todo).
Animador na premissa, o filme em vários momentos parece não sustentar a ousadia de princípio. Um problema menor: em todo caso, trata-se de um filme com algo a dizer -coisa rara na indústria cultural, setor de imagem.


Violação de Privacidade
The Final Cut
   
Direção: Omar Naïm
Produção: EUA, 2004
Com: Robin Williams, Jim Caviezel, Mira Sorvino
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Iguatemi e circuito


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