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FERNANDO GABEIRA
Profetas atropelados pela história
Em 2005, afirmei que o governo morreu e que era preciso
tocar o barco, para que o país funcionasse até as eleições.
Ganhei o Troféu Quebrou a Cara do ano, conferido pela colunista Helena Chagas, do "Globo".
Foi uma boa escolha. No ano seguinte, a realidade mostrava Lula batendo todos os candidatos,
crescendo em todas as classes. Em
termos de controle do Estado,
perspectiva de continuidade, a
história atropelava minha profecia.
John Gray, falando de Francis
Fukuayama, afirma que ele, como todos os profetas de quem a
história faz chacota, dizem que
foram mal compreendidos.
Não é o meu caso. Expressei-me
inadequadamente. A frase não
indica o tipo de morte a que estava me referindo. Pensava na morte da capacidade de empolgar o
país, de conduzi-lo a mudanças
ou mesmo liderá-lo em grandes
dificuldades. Referia-me à morte
como se falasse das estrelas que
desaparecem, mas continuam
emitindo alguma luz.
Zhores e Roy Medvedev no livro
"Um Stálin Desconhecido", descrevem esse movimento a que me
refiro, de forma bem detalhada.
Contam o impacto do relatório de
Krushev descrevendo as atrocidades do período stalinista. Muitos
enlouqueceram, outros suicidaram-se, houve muita decepção.
Segundo eles, quem olhar apenas
as estruturas do Estado não sentirá os efeitos. São como uma bomba de nêutrons que destrói as pessoas, deixando intactas as edificações.
Como o stalinismo não se
apoiava só na repressão mas também na ideologia, uma parte do
edifício ruiu e ele se inclinou como a Torre de Pisa.
Quando falei em morte, também previa uma dinâmica, pois
não é possível sobreviver a uma
sucessão de erros que jamais se
viu cometer assim num curto espaço histórico. Mas está aí meu
engano.
A morte é fim de linha. A morte
é irreversível, quando solta numa
frase, sem fundamento político.
Quem pode tomar essa liberdade
é a literatura com seu realismo
mágico, ou mesmo Jorge Amado
com sua linda novela "A Morte e
a Morte de Quincas Berro d'Água".
Apesar das liberdades poéticas,
são nas palavras de Fernando
Pessoa que posso me corrigir: o
governo sobreviveu a si mesmo
como um fósforo frio.
Todos sabem que me desencantei. Pensava passar apenas alguns
maus momentos. Não contava
com esse longo processo de decomposição. Previ que essa experiência que entusiasmou a América Latina e despertou esperanças na Europa corria o risco de
acabar na porta da delegacia.
Não posso esconder a tristeza de
ver perdido um dos grandes trunfos nas possibilidades de mudança no Brasil: a legitimidade.
A Suécia não seria o que foi se
não houvesse confiança nos políticos do país, social-democracia à
frente. Mesmo agora, a adaptação ao novo momento globalizado só foi possível a partir desse
vínculo.
Esse vínculo, nós o tivemos num
momento e o perdemos. Na minha visão de história, é outra forma de morte. Quando mencionei
essa idéia num discurso, disseram: o Brasil não é a Suécia. Mas,
se compararmos as duas experiências, o povo brasileiro pelo
menos tentou. Nós é que falhamos.
Foi muito dita uma frase, creio
que de Eduardo Galeano, afirmando que era proibido trair a
esperança. Vejo isso de uma forma flexível: não se trai a esperança apenas não atingindo os objetivos. Aqui, houve o abandonar-se no meio do caminho e, em vez
de empurrar o país para a frente,
dedicou-se ao jogo de esconde-esconde com a polícia.
Tentar realizar alguns projetos,
chocar-se com a realidade, chegar
ao final do caminho que honestamente se percorreu de uma forma
transparente pode renovar as esperanças, em bases talvez mais
realistas.
Embora estejamos no limiar de
uma campanha, esse é o panorama mais cinzento dos últimos
anos. Cada vez que alguém dança
no plenário, é o seu mandato que
é um pouco cassado, anos podem
ser perdidos com um rompimento
entre a sociedade e o Congresso.
Espero não tentar mais profecias. Vou me dedicar às realidades palpáveis, como o comportamento do feijão em gravidade zero.
@ - contato@gabeira.com.br
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