São Paulo, sábado, 08 de abril de 2006

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FERNANDO GABEIRA

Profetas atropelados pela história

Em 2005, afirmei que o governo morreu e que era preciso tocar o barco, para que o país funcionasse até as eleições.
Ganhei o Troféu Quebrou a Cara do ano, conferido pela colunista Helena Chagas, do "Globo". Foi uma boa escolha. No ano seguinte, a realidade mostrava Lula batendo todos os candidatos, crescendo em todas as classes. Em termos de controle do Estado, perspectiva de continuidade, a história atropelava minha profecia.
John Gray, falando de Francis Fukuayama, afirma que ele, como todos os profetas de quem a história faz chacota, dizem que foram mal compreendidos.
Não é o meu caso. Expressei-me inadequadamente. A frase não indica o tipo de morte a que estava me referindo. Pensava na morte da capacidade de empolgar o país, de conduzi-lo a mudanças ou mesmo liderá-lo em grandes dificuldades. Referia-me à morte como se falasse das estrelas que desaparecem, mas continuam emitindo alguma luz.
Zhores e Roy Medvedev no livro "Um Stálin Desconhecido", descrevem esse movimento a que me refiro, de forma bem detalhada. Contam o impacto do relatório de Krushev descrevendo as atrocidades do período stalinista. Muitos enlouqueceram, outros suicidaram-se, houve muita decepção. Segundo eles, quem olhar apenas as estruturas do Estado não sentirá os efeitos. São como uma bomba de nêutrons que destrói as pessoas, deixando intactas as edificações.
Como o stalinismo não se apoiava só na repressão mas também na ideologia, uma parte do edifício ruiu e ele se inclinou como a Torre de Pisa.
Quando falei em morte, também previa uma dinâmica, pois não é possível sobreviver a uma sucessão de erros que jamais se viu cometer assim num curto espaço histórico. Mas está aí meu engano.
A morte é fim de linha. A morte é irreversível, quando solta numa frase, sem fundamento político. Quem pode tomar essa liberdade é a literatura com seu realismo mágico, ou mesmo Jorge Amado com sua linda novela "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".
Apesar das liberdades poéticas, são nas palavras de Fernando Pessoa que posso me corrigir: o governo sobreviveu a si mesmo como um fósforo frio.
Todos sabem que me desencantei. Pensava passar apenas alguns maus momentos. Não contava com esse longo processo de decomposição. Previ que essa experiência que entusiasmou a América Latina e despertou esperanças na Europa corria o risco de acabar na porta da delegacia.
Não posso esconder a tristeza de ver perdido um dos grandes trunfos nas possibilidades de mudança no Brasil: a legitimidade.
A Suécia não seria o que foi se não houvesse confiança nos políticos do país, social-democracia à frente. Mesmo agora, a adaptação ao novo momento globalizado só foi possível a partir desse vínculo.
Esse vínculo, nós o tivemos num momento e o perdemos. Na minha visão de história, é outra forma de morte. Quando mencionei essa idéia num discurso, disseram: o Brasil não é a Suécia. Mas, se compararmos as duas experiências, o povo brasileiro pelo menos tentou. Nós é que falhamos.
Foi muito dita uma frase, creio que de Eduardo Galeano, afirmando que era proibido trair a esperança. Vejo isso de uma forma flexível: não se trai a esperança apenas não atingindo os objetivos. Aqui, houve o abandonar-se no meio do caminho e, em vez de empurrar o país para a frente, dedicou-se ao jogo de esconde-esconde com a polícia.
Tentar realizar alguns projetos, chocar-se com a realidade, chegar ao final do caminho que honestamente se percorreu de uma forma transparente pode renovar as esperanças, em bases talvez mais realistas.
Embora estejamos no limiar de uma campanha, esse é o panorama mais cinzento dos últimos anos. Cada vez que alguém dança no plenário, é o seu mandato que é um pouco cassado, anos podem ser perdidos com um rompimento entre a sociedade e o Congresso.
Espero não tentar mais profecias. Vou me dedicar às realidades palpáveis, como o comportamento do feijão em gravidade zero.


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