São Paulo, segunda-feira, 08 de maio de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livro revela como Pauline Kael iluminou a crítica de cinema

AMIR LABAKI
da equipe de articulistas


Pauline Kael, 80, foi até o início dos anos 90 a mais brilhante e controvertida crítica de cinema dos EUA. Ninguém atravessava impassivelmente a leitura de suas resenhas para o semanário "The New Yorker", de onde se aposentou em 1991 por motivos de saúde depois de quase um quarto de século de colaboração regular.
Uma coletânea de suas críticas foi organizada por Sérgio Augusto para a Companhia das Letras na metade da década. A Record lança agora uma reunião de seus ensaios de maior fôlego, "Criando Kane", batizada a partir de seu provocativo texto, de 1970, em que defendia o roteirista Herman Mankiewicz (1897-1953) como o verdadeiro "autor" do roteiro de "Cidadão Kane" (1941).
James Agee e Dwight MacDonald formam com ela o trio básico de críticos de cinema dos EUA. Kael bateu-os longe em poder de polêmica. Suas resenhas eram impressionísticas e personalíssimas. Ninguém como ela recria os filmes confrontando-os com sua experiência de espectador e seu conhecimento histórico de cinema.
Não adianta procurar, pois inexiste similar nacional, ainda que admiradores brasileiros não lhe faltem. Fora do campo específico da crítica cinematográfica, Paulo Francis talvez tenha sido o maior deles, e não é à toa que em várias de suas colunas sobre filmes percebam-se ecos de Pauline Kael.
A grande batalha dela foi contra a mecanicista divisão dos filmes em "cinema de arte" e cinema de entretenimento, isto é, grosso modo, filmes estrangeiros ou experimentais e o cinemão hollywoodiano. A discussão anima o texto de abertura da antologia, "Fantasias do Público do Cinema de Arte", desenvolvido a partir de uma dissecação sobretudo da recepção crítica nos EUA a "Hiroshima, Meu Amor" (1959) de Alain Resnais.
"Eu gostaria de sugerir", escreve Kael, "que o público culto muitas vezes usa os filmes de "arte" em grande parte do mesmo modo permissivo que o grande público usa o "produto" de Hollywood: encontrando satisfação sob a forma barata e fácil da exibição de sua sensibilidade e liberalismo."
Apesar de jamais assinar embaixo a "teoria do autor", consolidada sobretudo no pós-guerra pelo "Cahiers du Cinema", Pauline Kael foi fundamental para o desenvolvimento da carreira da geração de cineastas independentes que revitalizaram a cena americana no início dos anos 70, notadamente Robert Altman, Francis Ford Coppola, Brian DePalma e George Lucas.
Ainda assim, Kael recusava-se a entronizar o diretor como único rei da produção cinematográfica. É nesse contexto que se insere, por exemplo, o mais delicioso ensaio do volume, "O Homem da Cidade dos Sonhos", dedicado a uma interpretação da persona cinematográfica de Cary Grant. Sua filmografia é analisada com a mesma paixão e meticulosidade com que se estudam os filmes de um Bergman ou de um Hitchcock.
"Quase todos os setenta e cinco filmes de Grant têm uma certa classe e estão bem acima da média de Hollywood, mas a maioria, quando se avalia bem, não é de fato muito boa", sustenta Kael, sem pestanejar em classificar os filmes como "de Grant", da mesma forma com que se costuma creditar automaticamente as produções como obra "do diretor" tal ou qual.
Mas, entenda-se bem, Kael adora o astro de "Intriga Internacional" (1958) e "Charada" (1963). Comparando-o a Audrey Hepburn como a essência da elegância nas telas, Kael não hesita em reconhecer que "todos pensam nele com carinho, porque personifica o que parece ter sido uma época mais feliz -uma época em que tínhamos relações mais simples com um ator".
O mesmo esforço de democratização da autoria está por trás de sua mais célebre intervenção, em favor de Mankiewicz e contra Welles, em "Criando Kane". O texto mais longo que escreveu é brilhante, mas injusto e equivocado.
Kael sustenta, em síntese, que Herman Mankiewicz, um roteirista de prestígio formado na dionisíaca mesa do Algonquin novaiorquino, concebeu e escreveu "Cidadão Kane" sozinho e que Welles o chantageou para co-assinar o roteiro. Sua tese baseou-se fundamentalmente em depoimentos da secretária de Mankiewicz e de John Houseman, produtor e posterior desafeto de Welles.
Peter Bogdanovich pôs os pingos nos "is" numa réplica publicada logo depois do ensaio de Kael, reforçada recentemente pelas notas de Jonathan Rosenbaum para o livro de entrevistas Welles-Bogdanovich. Charles Lederer, amigo de Mankiewicz e de Welles, acompanhou de perto a produção e depõe inequivocamente em favor do cineasta.
Em defesa de uma causa nobre (o maior reconhecimento do papel dos roteiristas), Kael errou. E dai? A função da crítica não é acertar sempre, mas sim iluminar a compreensão de uma obra. Kael, certa ou errada, fazia isso como ninguém.


Avaliação:    

Livro: Criando Kane Autora: Pauline Kael Editora: Record Quanto: R$ 35 (362 págs.)



Texto Anterior: "Vassourinha' representa o Brasil
Próximo Texto: Música: Zé Ramalho arquiteta a volta de Vandré
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.