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MÚSICA
Zé Ramalho arquiteta a volta de Vandré
Alexandre Campbell/Folha Imagem
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O cantor e compositor Zé Ramalho |
PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio
Como tem se tornado hábito, o
paraibano Zé Ramalho, 50, lança
novo disco já divulgando diretrizes para os próximos passos.
Apresentando "Nação Nordestina", avisa que a seguir centrará
esforços em promover a volta à
cena do conterrâneo Geraldo
Vandré, 64, com quem se prepara
para trabalhar, não sabe se como
parceiro, produtor ou o quê.
A terceira canção do CD é a estigmatizada "Pra Não Dizer Que
Não Falei das Flores" (68), de
Vandré, que ajuda a conceder fio
a um projeto que pretende expor
a indignação de artistas (menos
ou mais conhecidos) do Nordeste
contra o sistema político e social
vigente no Brasil -a volta extemporânea da canção de protesto?
Para tanto, seleciona arco político/cultural que abrange de Getúlio Vargas a Ivete Sangalo, de Luiz
Gonzaga a Gilberto Gil. Em entrevista, o artista tenta esclarecer.
Folha - Qual é o conceito por
trás de "Nação Nordestina"?
Zé Ramalho - Queria fazer um
conceito político, de mostrar o saque e a inteligência do autor nordestino percebendo temas sociais
que faz tempo que a música brasileira não apresenta. Depois que os
militares findaram o regime, os
artistas engajados perderam um
pouco do fio da reivindicação política nas canções. Embora não estejamos mais numa ditadura,
acredito que as classes menos favorecidas estão cada vez mais distantes de terem um padrão mínimo de vida. E vejo os governantes
muito à vontade diante disso, é
uma coisa que me incomoda. Esse disco é um brado, um grito
contra essa situação imposta.
Folha - Por que os artistas engajados perderam o fio?
Ramalho - Não vou citar os nomes dos artistas, porque todo
mundo sabe quem estava fazendo
esse tipo de trabalho. Existia essa
fornada de artistas talentosos e
habilidosos em construir críticas
em metáforas. O fio se perdeu,
acredito, devido à acomodação.
Talvez essa diluição se deva à facilidade que se abriu -hoje posso
falar palavras como "comunismo", "revolução", "ditadura".
Mas mesmo assim nesse final total de milênio vejo o Brasil despedaçado por sequências de governantes que não tem nem sequer o
romantismo de querer entrar para a história como pessoas que
olharam para o país.
Quando ouvi, há uns três anos, a
canção "O Meu País" (leia a letra
abaixo), numa fita de um cantor
chamado Flávio José, me inspirei
para todo o processo do disco. Fiquei num torpor, chorei muito
quando ouvi. Comecei a procurar
canções que se encaixassem ao redor desse conceito.
Este é um ano político. Encaixei
o projeto para o ano 2000 por estratégia. Só não pensei que ia estar
tudo isso ao redor. Os governantes não têm nenhum tato com o
povo. Essa cena dos índios serem
discriminados em Coroa Vermelha é um absurdo. Eles deveriam
ser os primeiros convidados.
Folha - Você está preparado
para ser tachado de panfletário?
Ramalho - Pensei nisso tudinho. Para mim, minha carreira
está ótima, mas tenho que fazer
alguma coisa pelo meu povo, preciso gritar. Seria panfletário se
fosse gratuito, mas não é. A intenção também é mostrar o valor dos
autores do Nordeste. Continuaremos sempre discriminados e
sempre imprescindíveis para a
cultura e a construção do país.
Geraldo Vandré aparecer na capa
do disco é o primeiro contato dele
depois de 30 anos longe do sistema. Fez questão, assinou um documento de cessão de imagem,
um contato com multinacional
que não tinha havia 30 anos.
Tenho uma ligação de muitas
aventuras com Vandré. Aquela
loucura dele é real, mas consigo
passar da casca da loucura e captar o que ele pensa. Sou privilegiado de ter ouvido canções de Vandré que ser humano nenhum escutou. São maravilhosas.
A canção que regravei é estigmatizada, mas tem uma mensagem de extremo pacifismo, "somos todos iguais, braços dados
ou não", vem a calhar com o que
está acontecendo. Será ouvida hoje como uma simples canção.
Folha - Vandré não vai voltar a
fazer música?
Ramalho - Ele quer fazer um
disco. Comigo. Não sei se é os dois
cantando, se eu produzindo, mas
ele diz que quer. Precisa passar a
"Nação Nordestina", mas depois
vamos sentar para conversar.
Reencontrei Vandré em Foz do
Iguaçu, em 86 ou 87. Ele estava lá
por conta das coisas da Aeronáutica, fez a música que fez e ao mesmo tempo vive no meio da Aeronáutica. "Estou aqui estudando a
arte militar", disse ele. Me procurou e pediu para fazer uma aparição no meu show. Fez uma pantomima, uma versão em alemão de
uma música dos anos 60, "Where
Have All the Flowers Gone", "para onde foram todas as flores", veja a relação com a música dele.
Entrou vestido de soldado, cantou de costas, eu traduzindo em
português o que ele cantava em
alemão. Depois do número todo,
apareceu o autor. Cantou três
canções novas de arrepiar, em
português. O compositor continua vivo, produzindo.
Para trabalhar com ele, vou ter
que anular um bocado de coisa
que estou fazendo. Ele é extremamente imprevisível, é parecido
com João Gilberto nesse sentido.
Acho que sou a pessoa em quem
ele tem confiança para se reintegrar numa provável incursão no
sistema de disco -não sei se isso
é uma cruz ou um privilégio (ri).
Folha - Como se explica, no
contexto do CD, a presença de
Ivete Sangalo, um expoente da
vertente que a terminologia dos
60 chamaria de "alienada"?
Ramalho - (Ri.) Ivete, apesar de
estar nesse glamour de rainha da
axé music, é uma nordestina como outra qualquer, que vendia
marmita para sobreviver quando
menina. Ela é das beiradas, nasceu no Juazeiro da Bahia, na beira
do rio São Francisco. É sertão bravo, de onde os japoneses conseguiram extrair uva, melão e maçã.
Aí a cidade cresceu, teve aeroporto, mas antes era inóspita. Tudo
isso é o Nordeste.
Folha - A presença dela vai
ajudar a promover seu disco...
Ramalho - É, "Amar Quem Eu
Já Amei" será a canção de trabalho. Não posso me furtar de perceber que a gravadora escolheu
essa música por opção estritamente comercial. Mas não foi sugestão deles de chamá-la, absolutamente. Não vejo nenhum mal
em colocar o dado comercial, a
função do disco é essa também.
Folha - Em outra ponta ideológica, você parece fazer um elogio a Getúlio Vargas em "Ele
Disse", agora tocando em trabalhismo, populismo, até na questão ditatorial. É um elogio?
Ramalho - Esse foi um grande
sucesso com Jackson do Pandeiro, achei que vinha a calhar. Talvez a impressão de que seja um
elogio nem existisse se eu não tivesse colocado o discurso de Getúlio Vargas. Mas veja bem como
ele falava aos trabalhadores no
Dia do Trabalho de 1951. Em
2000, nesse dia, nosso presidente
estava fazendo o quê? Estava
completamente isolado. FHC
odeia o contato com o povo. É
muito claro que ele não gosta da
população do Brasil, da juventude, dos índios. Não entendo.
Folha - Você classificaria seu
disco como de esquerda?
Ramalho - Olhe, costumo dizer
que minha posição mais confortável é estar em cima do muro.
Mas se quiser olhar as coisas, é
mais para a esquerda que para a
direita. Não me incomodo, de jeito nenhum, se se colocar como
disco de esquerda. Sei que me fortaleceu muito fazer esse disco,
"ramalhear" cada música daquelas. A maioria dos artistas se estressa, fica entediada de ter que
gravar conforme os anos vão passando. Isso acontece inversamente com isso. Cada vez que vou gravar, vou com extrema alegria.
Folha - Você tem candidatos
para as próximas eleições?
Ramalho - Não. Desde 85 anulo
meu voto em todas as eleições.
Nenhuma pessoa vai estar ali passando pela minha mão. Até os políticos ditos bons engrossam o coro dos contentes na hora de aprovar rolagem de dívida -no fim
do mês recebem todas as regalias.
Político hoje, do jeito que as coisas vão, é um corrupto em potencial até que se prove o contrário.
O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora BMG.
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