São Paulo, segunda-feira, 08 de maio de 2000


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MÚSICA
Zé Ramalho arquiteta a volta de Vandré

Alexandre Campbell/Folha Imagem
O cantor e compositor Zé Ramalho


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio

Como tem se tornado hábito, o paraibano Zé Ramalho, 50, lança novo disco já divulgando diretrizes para os próximos passos. Apresentando "Nação Nordestina", avisa que a seguir centrará esforços em promover a volta à cena do conterrâneo Geraldo Vandré, 64, com quem se prepara para trabalhar, não sabe se como parceiro, produtor ou o quê.
A terceira canção do CD é a estigmatizada "Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores" (68), de Vandré, que ajuda a conceder fio a um projeto que pretende expor a indignação de artistas (menos ou mais conhecidos) do Nordeste contra o sistema político e social vigente no Brasil -a volta extemporânea da canção de protesto?
Para tanto, seleciona arco político/cultural que abrange de Getúlio Vargas a Ivete Sangalo, de Luiz Gonzaga a Gilberto Gil. Em entrevista, o artista tenta esclarecer.

Folha - Qual é o conceito por trás de "Nação Nordestina"?
Zé Ramalho -
Queria fazer um conceito político, de mostrar o saque e a inteligência do autor nordestino percebendo temas sociais que faz tempo que a música brasileira não apresenta. Depois que os militares findaram o regime, os artistas engajados perderam um pouco do fio da reivindicação política nas canções. Embora não estejamos mais numa ditadura, acredito que as classes menos favorecidas estão cada vez mais distantes de terem um padrão mínimo de vida. E vejo os governantes muito à vontade diante disso, é uma coisa que me incomoda. Esse disco é um brado, um grito contra essa situação imposta.

Folha - Por que os artistas engajados perderam o fio?
Ramalho -
Não vou citar os nomes dos artistas, porque todo mundo sabe quem estava fazendo esse tipo de trabalho. Existia essa fornada de artistas talentosos e habilidosos em construir críticas em metáforas. O fio se perdeu, acredito, devido à acomodação. Talvez essa diluição se deva à facilidade que se abriu -hoje posso falar palavras como "comunismo", "revolução", "ditadura". Mas mesmo assim nesse final total de milênio vejo o Brasil despedaçado por sequências de governantes que não tem nem sequer o romantismo de querer entrar para a história como pessoas que olharam para o país.
Quando ouvi, há uns três anos, a canção "O Meu País" (leia a letra abaixo), numa fita de um cantor chamado Flávio José, me inspirei para todo o processo do disco. Fiquei num torpor, chorei muito quando ouvi. Comecei a procurar canções que se encaixassem ao redor desse conceito.
Este é um ano político. Encaixei o projeto para o ano 2000 por estratégia. Só não pensei que ia estar tudo isso ao redor. Os governantes não têm nenhum tato com o povo. Essa cena dos índios serem discriminados em Coroa Vermelha é um absurdo. Eles deveriam ser os primeiros convidados.

Folha - Você está preparado para ser tachado de panfletário?
Ramalho -
Pensei nisso tudinho. Para mim, minha carreira está ótima, mas tenho que fazer alguma coisa pelo meu povo, preciso gritar. Seria panfletário se fosse gratuito, mas não é. A intenção também é mostrar o valor dos autores do Nordeste. Continuaremos sempre discriminados e sempre imprescindíveis para a cultura e a construção do país. Geraldo Vandré aparecer na capa do disco é o primeiro contato dele depois de 30 anos longe do sistema. Fez questão, assinou um documento de cessão de imagem, um contato com multinacional que não tinha havia 30 anos.
Tenho uma ligação de muitas aventuras com Vandré. Aquela loucura dele é real, mas consigo passar da casca da loucura e captar o que ele pensa. Sou privilegiado de ter ouvido canções de Vandré que ser humano nenhum escutou. São maravilhosas.
A canção que regravei é estigmatizada, mas tem uma mensagem de extremo pacifismo, "somos todos iguais, braços dados ou não", vem a calhar com o que está acontecendo. Será ouvida hoje como uma simples canção.

Folha - Vandré não vai voltar a fazer música?
Ramalho -
Ele quer fazer um disco. Comigo. Não sei se é os dois cantando, se eu produzindo, mas ele diz que quer. Precisa passar a "Nação Nordestina", mas depois vamos sentar para conversar. Reencontrei Vandré em Foz do Iguaçu, em 86 ou 87. Ele estava lá por conta das coisas da Aeronáutica, fez a música que fez e ao mesmo tempo vive no meio da Aeronáutica. "Estou aqui estudando a arte militar", disse ele. Me procurou e pediu para fazer uma aparição no meu show. Fez uma pantomima, uma versão em alemão de uma música dos anos 60, "Where Have All the Flowers Gone", "para onde foram todas as flores", veja a relação com a música dele.
Entrou vestido de soldado, cantou de costas, eu traduzindo em português o que ele cantava em alemão. Depois do número todo, apareceu o autor. Cantou três canções novas de arrepiar, em português. O compositor continua vivo, produzindo.
Para trabalhar com ele, vou ter que anular um bocado de coisa que estou fazendo. Ele é extremamente imprevisível, é parecido com João Gilberto nesse sentido. Acho que sou a pessoa em quem ele tem confiança para se reintegrar numa provável incursão no sistema de disco -não sei se isso é uma cruz ou um privilégio (ri).

Folha - Como se explica, no contexto do CD, a presença de Ivete Sangalo, um expoente da vertente que a terminologia dos 60 chamaria de "alienada"?
Ramalho -
(Ri.) Ivete, apesar de estar nesse glamour de rainha da axé music, é uma nordestina como outra qualquer, que vendia marmita para sobreviver quando menina. Ela é das beiradas, nasceu no Juazeiro da Bahia, na beira do rio São Francisco. É sertão bravo, de onde os japoneses conseguiram extrair uva, melão e maçã. Aí a cidade cresceu, teve aeroporto, mas antes era inóspita. Tudo isso é o Nordeste.

Folha - A presença dela vai ajudar a promover seu disco...
Ramalho -
É, "Amar Quem Eu Já Amei" será a canção de trabalho. Não posso me furtar de perceber que a gravadora escolheu essa música por opção estritamente comercial. Mas não foi sugestão deles de chamá-la, absolutamente. Não vejo nenhum mal em colocar o dado comercial, a função do disco é essa também.

Folha - Em outra ponta ideológica, você parece fazer um elogio a Getúlio Vargas em "Ele Disse", agora tocando em trabalhismo, populismo, até na questão ditatorial. É um elogio?
Ramalho -
Esse foi um grande sucesso com Jackson do Pandeiro, achei que vinha a calhar. Talvez a impressão de que seja um elogio nem existisse se eu não tivesse colocado o discurso de Getúlio Vargas. Mas veja bem como ele falava aos trabalhadores no Dia do Trabalho de 1951. Em 2000, nesse dia, nosso presidente estava fazendo o quê? Estava completamente isolado. FHC odeia o contato com o povo. É muito claro que ele não gosta da população do Brasil, da juventude, dos índios. Não entendo.

Folha - Você classificaria seu disco como de esquerda?
Ramalho -
Olhe, costumo dizer que minha posição mais confortável é estar em cima do muro. Mas se quiser olhar as coisas, é mais para a esquerda que para a direita. Não me incomodo, de jeito nenhum, se se colocar como disco de esquerda. Sei que me fortaleceu muito fazer esse disco, "ramalhear" cada música daquelas. A maioria dos artistas se estressa, fica entediada de ter que gravar conforme os anos vão passando. Isso acontece inversamente com isso. Cada vez que vou gravar, vou com extrema alegria.

Folha - Você tem candidatos para as próximas eleições?
Ramalho -
Não. Desde 85 anulo meu voto em todas as eleições. Nenhuma pessoa vai estar ali passando pela minha mão. Até os políticos ditos bons engrossam o coro dos contentes na hora de aprovar rolagem de dívida -no fim do mês recebem todas as regalias. Político hoje, do jeito que as coisas vão, é um corrupto em potencial até que se prove o contrário.


O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora BMG.


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