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CONTARDO CALLIGARIS
Sexo na terceira idade
Anos atrás, fui consultado
pelos filhos de um senhor de
84 anos, viúvo e parcialmente inválido. Estavam preocupados
com a saúde mental do pai. Não
que o octogenário fosse confuso
ou delirante. Nada disso. Mas, segundo os filhos (dois homens e
uma mulher, todos acima dos 40),
seu comportamento era grotesco:
não condizia com a idade.
Logo após a morte da esposa, o
homem ficara prostrado. Revelara-se necessária uma enfermeira
que lhe fizesse companhia durante o dia. Entre o octogenário e a
enfermeira (de 30 anos) criara-se
uma cumplicidade. Os filhos não
sabiam se os dois tinham relações
sexuais, mas ocorria o seguinte: a
pedido do octogenário, a enfermeira aspergia-se copiosamente
do perfume que a esposa usara
durante anos e desfilava as roupas da morta (vestidos, lingerie,
sapatos). Regularmente, os filhos
encontravam o pai na cama,
agarrado em alguma peça do vestuário desfilado, extasiado.
Claro, eles receavam que a enfermeira, além de ser modelo de
passarela, fosse também trapaceira. Mas, dinheiro à parte, ficavam
sobretudo enojados com a conduta do pai. O velho tornara-se obsceno, indecente: será que um psicanalista poderia falar com ele e
acalmá-lo um pouco?
Eu achava o octogenário inventivo. Por que privá-lo de uma encenação em que ele encontrava prazer e conseguia manter vivo o
apetite sexual sem trair a lembrança da mulher morta?
Preferi questionar os filhos. E
descobri três razões básicas (e
contraditórias) pelas quais o sexo
dos idosos pode ser um escândalo.
1) Ser adultos, para nós, significa separarmo-nos do lar dos pais,
estabelecer nossa independência.
Mas a coisa não é simples: a prática da herança nos cai bem, e precisamos da proteção dos mais velhos durante um bom tempo, já
que, ao nascer, não sabemos nem
caminhar. Os pais, em suma,
nunca poderão se tornar outros
quaisquer. Para além da gratidão
e do carinho devidos e merecidos,
eles serão sempre, para nós, muito
mais rivais do que os outros. Pois,
no caso deles, a rivalidade é exacerbada pela lembrança da submissão passada: você me teve nas mãos, mas agora é minha vez, sai
da frente e pára de gozar.
2) Conhecemos a idéia freudiana do complexo de Édipo. Sumariamente: em algum momento da infância, o menino tem uma paixão pela mãe e considera o pai
um concorrente amoroso; a menina prefere o pai e rivaliza com a
mãe. Nessa situação, às vezes, as
crianças ciumentas rejeitam a
idéia de que os pais tenham uma
vida sexual juntos. E é possível
que o mesmo ciúme continue durante nossa vida adulta.
Mas há mais: imaginar que os
pais não tenham vida sexual não
é apenas uma maneira de querê-los só para nós. Acontece também
que, com o tempo, constatamos
que os prazeres lúbricos acarretam atribulações. Rejeitar ou impedir a vida sexual dos "velhos"
torna-se uma maneira de protegê-los dos transtornos inevitáveis
do sexo. O velho pai ou a velha
mãe são chamados por nós a ocupar um lugar mítico de sábios, entre a múmia de Lênin e o oráculo
de Delfos. E o sábio ideal não deve
ser atormentado por paixões, sob
pena de nos parecer frustrado e
imperfeito como a gente. Idealizamos os velhos como idealizamos as crianças: a ambos recusamos a sexualidade para que satisfaçam nossos estereótipos de sabedoria quase zen (para os velhos) e de inocência feliz (para as
crianças).
3) Somos narcisistas: ser desejáveis nos parece tão importante
quanto transar concretamente.
Passear os abdominais sarados
pela praia é menos arriscado que
se debater na cama com um outro. Afinal, sabemos botoxar, lipoaspirar e proteinizar os corpos,
mas não as relações. Benefício nada secundário: cuidando de nossa
imagem desejável, podemos esquecer nossos desejos e nossas
fantasias sexuais, que são, às vezes, incômodos e inquietantes.
Ora, a sexualidade da terceira
idade demonstra que corpos diferentes do molde estabelecido são
atravessados por desejos e prazeres: a paixão e o sexo funcionam
mesmo quando as mãos se perdem em dobras inoportunas de
carne e pele. Surge, portanto, uma
dúvida: será que o interesse dominante pela beleza (e pela conformidade) dos corpos é um jeito de
reprimir desejos e fantasias sexuais? A sexualidade dos idosos
nos indigna porque sugere que
nosso incurável narcisismo é um
amparo contra a própria sexualidade.
Essas reflexões são evocadas por
um livro corajoso que chega às livrarias americanas nesta semana: "A Round-Heeled Woman:
My Late-Life Adventures in Sex
and Romance" (uma mulher fácil: minhas aventuras tardias, sexuais e amorosas). A autora é Jane Juska, uma educadora, hoje
com 70 anos, divorciada há décadas, que, em 1999, colocou o seguinte anúncio na "New York Review of Books": "Antes de cumprir
67 anos -em março que vem-
quero fazer bastante sexo com um
homem de quem eu goste. Se quiser conversar primeiro, Trollope é
meu escritor preferido". Recebeu
dezenas de respostas e agora narra suas intensas aventuras com
uma série de homens entre 32 e 82
anos de idade.
O filho, que tem 38 anos, aprova, mas declara que não lerá o livro.
ccalligari@uol.com.br
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