São Paulo, quinta-feira, 08 de maio de 2008

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Crítica/erudito

Nelson Freire recria a música de Bach em Schumann e Chopin

Pianista mineiro, que volta a se apresentar hoje no teatro Cultura Artística, encerrou concerto com Villa-Lobos

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Nem sempre os concertos dele são assim. O mais comum é que Nelson Freire precise de algumas peças até entrar naquela sua dimensão característica e única, um tempo próprio que configura a música segundo uma outra lei. Mas terça-feira, no Cultura Artística, ele já entrou transfigurado, encantando tudo em que punha a mão.
A começar por Bach (1685-1750), que nunca é um começo qualquer e muito menos nesse programa, tão incomumente construído. Nelson Freire tocou um "Prelúdio Para Órgão", em sol menor, na transcrição de Ziloti, seguido da "Fantasia Cromática e Fuga". O primeiro virou um estudo de planos, com o desdramatizado sol grave pulsando nas profundezas enquanto a melodia falava diretamente com Deus, acima do coral interno.
E a "Fantasia", sem qualquer pretensão de autenticidade barroca, alçou-se a um alucinante improviso, arpejos chopinianos à procura de um tom, até cravar na fuga seu desejo de ordem. Ainda bem que o pianista esbarrou de leve numas notinhas, para afirmar a sua humanidade.
Tocar depois as "Cenas Infantis" de Schumann (1810-56) podia parecer estranho. Mas não era apenas a seqüência de tonalidades (sol menor, ré menor, sol maior) que preparava o Schumann: tudo ali respira o ar da polifonia bachiana, de modo direto ou sugerido. A música de Bach é uma das maiores descobertas do século 19 e representou, para compositores como Schumann e Chopin (1810-49), a possibilidade de inventar música em outras bases, depois do acachapante Beethoven (1770-1827).
Do modo como Nelson Freire tocou o terceiro movimento, por exemplo, "Pega-Pega", era impossível não perceber que os arpejos de Schumann revivem os arpejos de Bach. (O contexto aqui era outro, diferente da sua gravação de 2002.) E de modo como tocou "A Criança Que Pede" ou "Quase Sério Demais" não dava para não ouvir de novo as texturas do "Prelúdio Para Órgão", só que ainda mais amaciadas.
Do modo como ele tocou, por fim, "O Poeta Fala", não dava para falar: era o poeta falando, do lado de lá da experiência, convocando 1.100 almas para um silêncio além da música.
A segunda parte do concerto abriu com dois pequenos prelúdios, op. 34, de Shostakovich (1906-75), e o "Poema" op. 32/ 1, de Scriabin (1872-1915). Três exemplos de onde foi dar o contraponto de Bach, já distante da origem, mas ainda falando a voz do pai. O lindíssimo "Poema" servia de escala também, antes de entrar nas vastidões da "Sonata nº 3"de Chopin, que Nelson Freire gravou em 2003 e tocou em São Paulo no ano passado, mas agora se fazia ouvir nova, de novo.

Polifonia bachiana
O grande assunto ali é Bach; ou melhor, como combinar a polifonia bachiana com as melodias operísticas de começo do século 19. Veja-se o "Largo", uma homenagem à ópera italiana, em que as três camadas, logo depois do começo, compõem uma virtual orquestra acompanhando um dueto. Só que os baixos, agora, ecoavam mais do que nunca aqueles baixos bachianos do "Prelúdio".
Um pequeno enrosco no "Finale" parecia ironia de roteirista, para voltar ao começo de um programa tão incrivelmente executado. E tanto mais certo que o bis começasse com uma "Mazurca" de Chopin e passasse a uma transcrição de "Jesus Alegria dos Homens", de Bach. Depois disso, só Villa-Lobos (1887-1959): nosso Bach, que Nelson Freire toca como ninguém, e vai gravar em 2009.


NELSON FREIRE
Quando:
hoje, às 21h

Onde: teatro Cultura Artística - sala Esther Mesquita (r. Nestor Pestana, 196, tel. 0/xx/11/3258-3344; livre).
Quanto: ingressos esgotados
Avaliação: ótimo


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