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Crítica/erudito
Nelson Freire recria a música de Bach em Schumann e Chopin
Pianista mineiro, que volta a se apresentar hoje no teatro Cultura Artística, encerrou concerto com Villa-Lobos
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Nem sempre os concertos dele são assim. O
mais comum é que
Nelson Freire precise de algumas peças até entrar naquela
sua dimensão característica e
única, um tempo próprio que
configura a música segundo
uma outra lei. Mas terça-feira,
no Cultura Artística, ele já entrou transfigurado, encantando tudo em que punha a mão.
A começar por Bach (1685-1750), que nunca é um começo
qualquer e muito menos nesse
programa, tão incomumente
construído. Nelson Freire tocou um "Prelúdio Para Órgão",
em sol menor, na transcrição
de Ziloti, seguido da "Fantasia
Cromática e Fuga". O primeiro
virou um estudo de planos, com
o desdramatizado sol grave
pulsando nas profundezas enquanto a melodia falava diretamente com Deus, acima do coral interno.
E a "Fantasia", sem qualquer
pretensão de autenticidade
barroca, alçou-se a um alucinante improviso, arpejos chopinianos à procura de um tom,
até cravar na fuga seu desejo de
ordem. Ainda bem que o pianista esbarrou de leve numas
notinhas, para afirmar a sua
humanidade.
Tocar depois as "Cenas Infantis" de Schumann (1810-56)
podia parecer estranho. Mas
não era apenas a seqüência de
tonalidades (sol menor, ré menor, sol maior) que preparava o
Schumann: tudo ali respira o ar
da polifonia bachiana, de modo
direto ou sugerido. A música de
Bach é uma das maiores descobertas do século 19 e representou, para compositores como
Schumann e Chopin (1810-49),
a possibilidade de inventar música em outras bases, depois do
acachapante Beethoven (1770-1827).
Do modo como Nelson Freire tocou o terceiro movimento,
por exemplo, "Pega-Pega", era
impossível não perceber que os
arpejos de Schumann revivem
os arpejos de Bach. (O contexto
aqui era outro, diferente da sua
gravação de 2002.) E de modo
como tocou "A Criança Que Pede" ou "Quase Sério Demais"
não dava para não ouvir de novo as texturas do "Prelúdio Para Órgão", só que ainda mais
amaciadas.
Do modo como ele tocou, por
fim, "O Poeta Fala", não dava
para falar: era o poeta falando,
do lado de lá da experiência,
convocando 1.100 almas para
um silêncio além da música.
A segunda parte do concerto
abriu com dois pequenos prelúdios, op. 34, de Shostakovich
(1906-75), e o "Poema" op. 32/
1, de Scriabin (1872-1915). Três
exemplos de onde foi dar o contraponto de Bach, já distante da
origem, mas ainda falando a
voz do pai. O lindíssimo "Poema" servia de escala também,
antes de entrar nas vastidões da
"Sonata nº 3"de Chopin, que
Nelson Freire gravou em 2003
e tocou em São Paulo no ano
passado, mas agora se fazia ouvir nova, de novo.
Polifonia bachiana
O grande assunto ali é Bach;
ou melhor, como combinar a
polifonia bachiana com as melodias operísticas de começo do
século 19. Veja-se o "Largo",
uma homenagem à ópera italiana, em que as três camadas, logo depois do começo, compõem uma virtual orquestra
acompanhando um dueto. Só
que os baixos, agora, ecoavam
mais do que nunca aqueles baixos bachianos do "Prelúdio".
Um pequeno enrosco no "Finale" parecia ironia de roteirista, para voltar ao começo de um
programa tão incrivelmente
executado. E tanto mais certo
que o bis começasse com uma
"Mazurca" de Chopin e passasse a uma transcrição de "Jesus
Alegria dos Homens", de Bach.
Depois disso, só Villa-Lobos
(1887-1959): nosso Bach, que
Nelson Freire toca como ninguém, e vai gravar em 2009.
NELSON FREIRE
Quando: hoje, às 21h
Onde: teatro Cultura Artística - sala
Esther Mesquita (r. Nestor Pestana,
196, tel. 0/xx/11/3258-3344; livre).
Quanto: ingressos esgotados
Avaliação: ótimo
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