São Paulo, quinta-feira, 08 de maio de 2008

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NINA HORTA

Carne de baleia

O melhor é não comer coisa tão portentosa; a baleia tem proporções do sagrado, do hierofânico

MUITOS CIENTISTAS dizem que esta história de "Save the Whales" (salvem as baleias) já acabou. Espécies que estavam em extinção podem agora ser comidas e protegidas. Ou vice-versa.
Na verdade, mesmo com as proibições, as meninas continuaram a ser caçadas. Num dos simpósios sobre o assunto, um membro do Parlamento japonês deu sua opinião, ou melhor, sua última palavra. "No Japão, nós temos nossos cachorrinhos de estimação, mas não implicamos com os coreanos nem os proibimos de comer seus cachorros. Logo, ninguém tem o direito de nos pedir para pararmos de comer baleias."
Os japoneses comem carne de baleia há séculos e foram salvos da fome na Segunda Guerra com carne de baleia frita e gordura de baleia cozida. Carne que já comprei aqui, no Mercado de Pinheiros, e que não nos soube bem, por preconceito. Os japoneses criaram uma indústria milionária e escaparam de leis de proteção à baleia por meio de buracos nas redes... da lei. A pesca é permitida para pesquisas científicas, e eles logo começaram a pesquisar loucamente, mas parece que virados mais para experiências gastronômicas.
Alguns dizem que, se não matarmos as baleias, elas comerão todos os peixes do mar, glupt, com aquelas bocarras imensas, onde já se aninharam Jonas e Gepetto.
Mas o melhor mesmo é não comer uma coisa tão portentosa. Está fora da escala dos nossos alimentos, tem proporções do sagrado, do hierofânico. Sua caçada é a luta contra mil touros de uma só vez, sua beleza e elegância culpam a quem as enreda em redes ou arpões.
O substituto para este gostinho de carne com peixe seria ler "Moby Dick", que acabou de sair pela Cosac Naify. Quem não leu pode estar perdendo um dos três melhores livros já escritos, segundo muitos críticos.
Mas o que comiam aqueles homens que saíam de terra firme para ficar anos no mar, matando baleias e guardando seu óleo para encher tonéis que viriam iluminar as ruas até do Rio de Janeiro, recolhendo o âmbar para perfumes, ossos (não sei se são ossos, alguma coisa durinha) para os espartilhos das mulheres? Comiam muito, nem sempre baleia. Comiam tanto que não cabe nesta crônica. Ishmael, o narrador e também protagonista de "Moby Dick", achava que jejuar arruinava o corpo e a alma e que todos os pensamentos originados durante um jejum deveriam ser necessariamente um tanto esfomeados. Ele e um amigo tentaram a caldeiradazinha caseira dos Caldeirões, uma estalagem em Nantucket... "Quando a caldeirada fumegante entrou, [...] eram pequenos moluscos suculentos, pouco maiores do que uma avelã, misturados com biscoitos do mar amassados, e carne de porco salgada, cortada em pedacinhos; isso era enriquecido com manteiga e temperado generosamente com sal e pimenta." "O mais piscoso de todos os lugares piscosos era o Caldeirões [...]"
Um dos capitães gostava de uma boa dieta e "apreciava de um modo um tanto destemperado a baleia, a mais saborosa iguaria para o seu paladar". Ensina em duas ou três páginas como fazer um bife de baleia. "Vou lhe dizer o que fazer para não estragá-lo cozinhando por muito tempo. Segure o bife com uma mão e mostre-lhe uma brasa com a outra; isto feito, sirva-o, escutou? [...] E os testículos para o café da manhã -não se esqueça."
O cérebro da baleia é considerado uma iguaria. "A caixa craniana é quebrada com um machado e os dois lobos arredondados e esbranquiçados são retirados (lembram exatamente dois grandes pudins), misturados com farinha e cozidos até se tornarem um delicioso manjar, com sabor semelhante ao de cabeça de vitela." E muito, muito mais. Aliás, absolutamente tudo sobre as baleias e, de quebra, uma leitura e tanto. "Moby Dick", Herman Melville, Cosac Naify.


ninahorta@uol.com.br

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