São Paulo, sexta, 8 de maio de 1998

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CINEMA - ESTRÉIAS
'Mera Coincidência' não é mera coincidência

JOSÉ GERALDO COUTO
da Equipe de Articulistas

Até por conta do título idiota que lhe deram no Brasil ("Mera Coincidência"), "Wag the Dog" poderia parecer apenas uma sátira oportunista ao recente envolvimento do presidente dos EUA, Bill Clinton, em escândalos sexuais.
De fato, lá está a história de um presidente (Michael Belson) acusado de molestar sexualmente uma impúbere bandeirante e dos quiproquós improvisados por seus assessores para abafar o caso, às vésperas de uma eleição.
Mas o filme, surpreendentemente, é muito mais que isso. Primeiro, porque não está interessado no que os presidentes americanos fazem ou deixam de fazer com garotinhas, mas sim na realidade paralela criada e difundida pela mídia e pela publicidade.
Em decorrência disso, não é o presidente o protagonista dessa comédia arrasadora, mas sim os dois homens convocados para desviar a atenção do público do escândalo inoportuno.
Eles são Conrad Brean (Robert De Niro), especialista em quebrar galhos de políticos, e Stanley Motss (Dustin Hoffman), produtor hollywoodiano de grande renome e ego maior ainda.
Juntos, os dois bolam e colocam na televisão (ou seja, tornam "real") uma guerra contra a Albânia, encenada com todas as tintas sentimentais e patrióticas que o público adora.
Se Barry Levinson é um cineasta impessoal, que costuma lançar mão do sentimentalismo (vide "Rain Man" e "Bom Dia, Vietnã"), aqui ele deixou de lado sua caretice habitual e apostou tudo num roteiro diabolicamente bem feito (por Hilary Henkin e David Mamet, a partir do romance "American Hero", de Larry Beinhart) e na qualidade dos atores.
Não convém adiantar aqui as confusões e reviravoltas do enredo. Basta dizer que, mesmo se mantendo dentro das convenções do cinema de espetáculo, essa comédia corrosiva esculhamba tudo o que há de mais estúpido na sociedade norte-americana de hoje.
As manipulações da mídia, o cinismo do poder, a paranóia bélica, a ignorância, a pieguice, o moralismo, a estupidez generalizada: tudo o que há de mais americano está concentrado ali.
Poder e informação
Isso vai soar como heresia, mas é como se "Mera Coincidência" fosse uma ilustração popular e cômica das teses de Jean Baudrillard e Paul Virilio sobre as conexões entre poder, guerra e informação.
Nesse aspecto, vai além de filmes políticos que lhe são aparentados, como "O Poder", de Sidney Lumet, e "Bob Roberts", de Tim Robbins.
De acordo com o filme, cada vez que surge um escândalo sexual na Casa Branca o governo americano inventa uma guerra em algum ponto do planeta. Não deixa de ser um retrato apropriado de uma nação composta de alto poderio militar, riqueza material, tecnologia prodigiosa e mentalidade jeca.
Parece que "Mera Coincidência" não fez sucesso nos EUA. Não admira. Num país onde gostar de sexo é doença, onde crianças andam armadas mas são punidas por beijar colegas, não poderia dar certo uma comédia que não tem humor histérico, nem música melosa, nem mensagens edificantes.
O grande público americano, aparentemente, só gosta de comédias histéricas (Jim Carrey, Bette Midler, Goldie Hawn, Dudley Moore) ou daquelas séries televisivas que nos ensinam a hora certa de dar risada.
Como no Brasil a regra é imitar, mesmo na estupidez, tudo o que acontece no norte da América, é possível que aqui o filme também fracasse. Será uma pena.

Filme: Mera Coincidência Produção: EUA, 1997 Direção: Barry Levinson Com: Dustin Hoffman, Robert De Niro Quando: a partir de hoje, nos cines Interlagos 2, Iguatemi 2, Bristol e circuito


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