São Paulo, Sábado, 08 de Maio de 1999
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LIVROS
Testemunho do nazismo é um monumento austero

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Victor Klemperer nasceu na Alemanha em 1881. Era filho de um rabino. Converteu-se ao protestantismo, lutou nas tropas do Kaiser durante a Primeira Guerra, foi condecorado, casou-se com uma não-judia, tornou-se professor titular em Dresden e era reconhecido como um grande especialista em literatura francesa.
Na década de 30, seu nome já constava como verbete em enciclopédias, ao lado do de seu irmão Georg, que fôra médico de Lênin, e de seu primo Otto Klemperer, famoso maestro. A família tem outro membro conhecido, aliás: trata-se de Werner Klemperer, que fazia o papel do comandante Klink, o chefe do campo de prisioneiros no seriado "Guerra, Sombra e Água Fresca". Victor Klemperer estava acabando de construir uma bela casa nos arredores de Dresden quando Hitler tomou o poder.
Estes diários cobrem o período do domínio nazista na Alemanha, de 1933 até 1945. Klemperer não fugiu do país, nem foi mandado para um campo de concentração. Continuou em Dresden, passando por toda sorte de privações, angústias, sobressaltos e violências.
O leitor talvez hesite diante de tema tão sombrio, e do tamanho do livro -quase 900 páginas. Mas basta começar a leitura para não largar mais. Não apenas porque se trata de um documento histórico riquíssimo, ou por ser o texto de um observador culto, desenganado e lúcido.
O que mais fascina nestes diários é a estrutura quase teatral que as circunstâncias vão impondo à narrativa. Sabemos que Klemperer sobreviverá (ele morreu em 1960). Mas ele não sabe. Sabemos que haverá o Holocausto, que o terror nazista vai se intensificar a cada ano. Mas ele não sabe.
Por que não fugiu? Em primeiro lugar, considera-se alemão, e não judeu. Tem horror aos sionistas e aos bolcheviques. Há a casa nova: sua mulher teria um baque se tivessem de abandoná-la. Achar emprego em alguma universidade estrangeira era difícil para ele. Sente-se incapaz de dar aulas em francês ou em inglês.
O cerco, entretanto, se fecha. Os alunos vão ficando cada vez mais raros. Klemperer é obrigado a jurar fidelidade a Hitler. Em 1935, é aposentado compulsoriamente. Seus vencimentos sofrem cortes sucessivos.
A imagem dos campos de concentração e os números do genocídio tendem naturalmente a obscurecer todos os outros exemplos de opressão contra os judeus. Mas a lista das barbaridades que se acumulam a cada ano deste diário é impressionante.
A casa de Klemperer é "arianizada". O casal tem de mudar-se para uma habitação coletiva (para judeus de boa situação social). Judeus são proibidos de frequentar a biblioteca pública. São proibidos de ir ao cinema. Não podem mais guiar carro. Não podem possuir animais domésticos. Não podem tomar sorvete; não podem comprar rabanetes.
Afirma-se que a idéia da "solução final" na câmara de gás só foi decidida quando os nazistas já davam a derrota como certa. Mas a sequência de medidas discriminatórias e de perseguições parece, desde muito antes, ser a preparação para o Holocausto. A cada ano, a vigilância sobre os judeus e a expropriação de seus bens se intensifica no sentido de deixá-los quase só com a roupa do corpo, prontos para o transporte aos campos de concentração.
Em 1945, Klemperer é forçado a entregar, aos últimos judeus que restam na cidade, as cartas intimando-os a se apresentarem para a deportação. É quando começa o bombardeio de Dresden. As últimas cem páginas do livro, contando a fuga do casal pela Alemanha destruída, já são em si mesmas um romance.
Mas é bastante frívolo falar em "romance" ou dizer que o livro "prende o interesse". Esse testemunho do nazismo é um monumento austero, aterrorizante e incontornável.


Avaliação:


Livro: Os Diários de Victor Klemperer Autor: Victor Klemperer Lançamento: Companhia das Letras Quanto: R$ 39 (896 págs.)


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