|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Longa reproduz ideário de novelas
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"A Partilha" narra a história de quatro filhas que
habitam universos distantes e se
encontram por ocasião da morte
da mãe. Trata-se, num primeiro
nível, de dividir uma herança.
Mas o título do filme tem um segundo sentido que logo se deixa
identificar: o que partilham quatro irmãs nessa vida, ou, de forma
mais ampla, o que significa a instituição da fraternidade?
É esse segundo sentido que pode interessar ao espectador, e ninguém dirá que se trata de um mau
ponto de partida.
Se o ponto de chegada não é tão
animador, resta perguntar o que
ocorreu no meio do percurso. O
roteiro é a primeira pista. De um
filme narrativo, espera-se que tenha um crescendo. Comece por
apresentar os conflitos e termine
por levá-los a algum lugar.
O roteiro de "A Partilha" opta
por criar uma série de cenas praticamente isoladas umas das outras, mas com desenvolvimento
quase sempre idêntico: no início,
coloca-se o lado humorístico da
situação, em seguida se introduz o
núcleo dramático e finalmente
desenha-se o psicodrama (o conflito entre as moças).
A narrativa por núcleos -em
vez de linear- não é nova. Autores clássicos, como Howard
Hawks, especializaram-se em trabalhar sequências que importam
mais em si do que por aquilo que
trazem à trama. Ou antes: a trama
decorre da soma dessas sequências, e não o inverso.
Não se pode dizer, no entanto,
que apenas por infelicidade Daniel Filho e seus roteiristas optaram por fazer com que o crescendo se desse praticamente em cada
cena, instaurando uma incômoda
sensação de monotonia no filme.
Talvez pese, em primeiro lugar,
a origem teatral da trama (adaptada de uma peça de Miguel Falabella), em que o principal é o contraste entre as várias personalidades (Lilia, a mais velha, é uma perua; Gloria é a mulher bem classe
média, razoavelmente infeliz em
seu casamento com um militar;
Andrea é a garota que se livrou do
marido e tem comportamento
moderno; Paloma, a mais nova, é
intelectual e lésbica). É normal, e
até desejável, que esses contrastes
existam para que possa existir
conflito. A questão, no entanto, é:
esses conflitos existem realmente?
Aqui talvez pesem profundamente os longos anos de Rede
Globo de Daniel Filho. Seja no jornalismo, seja nas novelas, a dramaturgia da Globo é bastante fiel
a uma tradição brasileira, que
consiste em expor os conflitos para depois miná-los e, por fim,
conduzi-los a um final que de certa forma tende a dissipá-los.
O que funciona numa dramaturgia de longo prazo (telejornais,
novelas) não é tão eficaz num filme. O que chamamos de "tradição" aqui mostra uma outra face:
é antes um vício ou um desvio de
comportamento.
Cena após cena, temos aqui um
caso em que a partilha de sentimentos felizes ou infelizes se
transforma em uma espécie de
acordão (para usar a linguagem
da crônica política).
Não há melhor exemplo disso
do que a cena em que Herson Capri (o marido militar) prepara-se
para invadir um apartamento
trancado. A gag é banal, mas de
efeito seguro: na hora em que vai
arrebentar a porta, alguém abre a
fechadura e ele se arrebenta. Por
que a gag é frustrada? Porque Daniel Filho infla o seu princípio (colocando em câmera lenta) e minimiza seu tombo: conflito no início; arreglo no final.
Essa gag resume o equívoco de
"A Partilha", em que, de resto, se
poderia esperar um show de boas
atrizes. Não é o que acontece: todas parecem estar fazendo teatro
e todas estão muitíssimo abaixo
do que se poderia esperar.
A Partilha
Direção: Daniel Filho
Produção: Brasil, 2001
Com: Andrea Beltrão, Paloma Duarte,
Lilia Cabral, Glória Pires
Quando: a partir de hoje nos cines
Eldorado, Jardim Sul e circuito
Texto Anterior: "A Partilha": Produção global se espalha pelo Brasil Próximo Texto: Panorâmica - Concurso: Ministério da Cultura premia roteiros Índice
|