São Paulo, sexta-feira, 08 de junho de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Longa reproduz ideário de novelas

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"A Partilha" narra a história de quatro filhas que habitam universos distantes e se encontram por ocasião da morte da mãe. Trata-se, num primeiro nível, de dividir uma herança.
Mas o título do filme tem um segundo sentido que logo se deixa identificar: o que partilham quatro irmãs nessa vida, ou, de forma mais ampla, o que significa a instituição da fraternidade?
É esse segundo sentido que pode interessar ao espectador, e ninguém dirá que se trata de um mau ponto de partida.
Se o ponto de chegada não é tão animador, resta perguntar o que ocorreu no meio do percurso. O roteiro é a primeira pista. De um filme narrativo, espera-se que tenha um crescendo. Comece por apresentar os conflitos e termine por levá-los a algum lugar.
O roteiro de "A Partilha" opta por criar uma série de cenas praticamente isoladas umas das outras, mas com desenvolvimento quase sempre idêntico: no início, coloca-se o lado humorístico da situação, em seguida se introduz o núcleo dramático e finalmente desenha-se o psicodrama (o conflito entre as moças).
A narrativa por núcleos -em vez de linear- não é nova. Autores clássicos, como Howard Hawks, especializaram-se em trabalhar sequências que importam mais em si do que por aquilo que trazem à trama. Ou antes: a trama decorre da soma dessas sequências, e não o inverso.
Não se pode dizer, no entanto, que apenas por infelicidade Daniel Filho e seus roteiristas optaram por fazer com que o crescendo se desse praticamente em cada cena, instaurando uma incômoda sensação de monotonia no filme.
Talvez pese, em primeiro lugar, a origem teatral da trama (adaptada de uma peça de Miguel Falabella), em que o principal é o contraste entre as várias personalidades (Lilia, a mais velha, é uma perua; Gloria é a mulher bem classe média, razoavelmente infeliz em seu casamento com um militar; Andrea é a garota que se livrou do marido e tem comportamento moderno; Paloma, a mais nova, é intelectual e lésbica). É normal, e até desejável, que esses contrastes existam para que possa existir conflito. A questão, no entanto, é: esses conflitos existem realmente?
Aqui talvez pesem profundamente os longos anos de Rede Globo de Daniel Filho. Seja no jornalismo, seja nas novelas, a dramaturgia da Globo é bastante fiel a uma tradição brasileira, que consiste em expor os conflitos para depois miná-los e, por fim, conduzi-los a um final que de certa forma tende a dissipá-los.
O que funciona numa dramaturgia de longo prazo (telejornais, novelas) não é tão eficaz num filme. O que chamamos de "tradição" aqui mostra uma outra face: é antes um vício ou um desvio de comportamento.
Cena após cena, temos aqui um caso em que a partilha de sentimentos felizes ou infelizes se transforma em uma espécie de acordão (para usar a linguagem da crônica política).
Não há melhor exemplo disso do que a cena em que Herson Capri (o marido militar) prepara-se para invadir um apartamento trancado. A gag é banal, mas de efeito seguro: na hora em que vai arrebentar a porta, alguém abre a fechadura e ele se arrebenta. Por que a gag é frustrada? Porque Daniel Filho infla o seu princípio (colocando em câmera lenta) e minimiza seu tombo: conflito no início; arreglo no final.
Essa gag resume o equívoco de "A Partilha", em que, de resto, se poderia esperar um show de boas atrizes. Não é o que acontece: todas parecem estar fazendo teatro e todas estão muitíssimo abaixo do que se poderia esperar.


A Partilha
 
Direção: Daniel Filho
Produção: Brasil, 2001
Com: Andrea Beltrão, Paloma Duarte, Lilia Cabral, Glória Pires
Quando: a partir de hoje nos cines Eldorado, Jardim Sul e circuito




Texto Anterior: "A Partilha": Produção global se espalha pelo Brasil
Próximo Texto: Panorâmica - Concurso: Ministério da Cultura premia roteiros
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.