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NINA HORTA
O fruto que nasce entre pedras
Uma árvore carregada de frutos é certamente manifestação de
algum mistério
NA SEMANA passada, li uma
boa matéria, aqui na Folha,
de Ana Paula Carradini. O
título: "Figo da Palestina redefine
data inicial da agricultura". E os
subtítulos: "Árvore foi domesticada há 11,4 mil anos, quase um milênio antes do trigo e da cevada".
Não sei por que aquela figueira
velhíssima me bateu nas entranhas, tive saudade dela. Gente é
mesmo uma raça sem-vergonha,
vive pelos cantos se queixando da
vida, procurando pêlo em ovo,
quando tem todos os frutos proibidos e permitidos ao alcance da
mão. Nada mais nos assombra, e
uma árvore carregada de frutos é
certamente manifestação de algum
mistério.
Com o artigo sobre a figueira tive
um breve momento de lucidez e fui
logo aos dicionários... fícus, fícus
carica, provavelmente encontrado
no Éden. Ou silvestres, na Arábia.
Brotam onde alguém cospe uma
semente, principalmente entre
duas pedras, adoram nascer entre
duas pedras. São parentes da fruta-pão (por esta ninguém esperava).
Crescem melhor nos países das
amêndoas, das oliveiras, das laranjas. Não são frutas como as outras
-as flores estão dentro da fruta.
Muito mais gostosos se amadurecem no pé e se são comidos logo
depois de apanhados, ainda mornos de sol. Na maioria dos países
mediterrâneos é tradição que
aquele que passa pode colher um
figo de árvore que não é sua, mas
nada de sacolas. A folha de louro
que se vê numa caixa de figos secos
de Esmirna evita o gorgulho. Ou o
caruncho? Bem, evita que se estraguem. E pode ser que os recheassem com nozes ou ricota de cabra...
Mas voltemos ao artigo da Folha, ao figo de 11 mil anos que me
deu a nostalgia da ur-figueira. Antes era difícil descobrir nas escavações figos tão velhos, porque os restos de comida são pequenos demais
e passam batidos. Mas, agora, são
submetidos à flotação. O que quer
dizer, acho, que a terra é posta na
água e que os carvõezinhos bóiam.
E há especialistas em carvão arqueológico, os antrocólogos, que
acabam descobrindo figos antiqüíssimos (cada vez mais antigos,
conforme melhora a antrocologia),
e vão assim empurrando para trás
os primórdios da agricultura.
Fiquei imaginando que, se lerdos
para perceber o milagre do figo, os
homens são rápidos nas invenções
de como comer a fruta. Fui procurar receitas na porta da geladeira de
11 mil anos e comecei por um livro
persa. A primeira coisa de que tratam é sobre as qualidades de frio ou
quente das frutas (o que não tem
nada a ver com sua temperatura),
de suma importância para o equilíbrio das refeições e controle de
doenças, pois pessoas de temperamento frio devem comer alimentos
quentes, e vice-versa.
Daí foi só copiar o Pedro Nava,
que explica isto direitinho. "[Justina] era freqüentemente consultada
pelas patroas sobre a natureza
quente ou fria do que se ia comer
-para não deixar assanhar as entranhas e encher a pele de urticária
e de espinhas. Justina, mamão é
quente ou frio? Que mamão, sinhá?
Esses amarelos aí da chácara, comidos maduros, são frios; apanhados verdes, para fazer doce, são
quentes. Agora, mamão vermelho,
esses que chamam de baiano e que
tem na casa do Gonçalves, é sempre
quente... Laranja seleta era quente.
Laranja serra d'água, fria. Jaca,
abacate, manga, cajá-açu, cabeluda,
araçá, grumixama, jatobá -quente.
Abóbora -quente. Lima, carambola, cajá-mirim, chuchu, abobrinha,
-frio. Coco? Depende. A água do
verde é fria, a do seco, quente. Já o
miolo, mole ou maduro, é sempre
quente."
Vou ter que parar a citação por aí,
me perdoem Galeno e Hipócrates,
muito interessantes estas tradições, mas, acreditem, o livro persa
diz que figo é quente, vê lá se pode,
eu poderia jurar que era frio, tem a
maior cara de.
@ - ninahorta@uol.com.br
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