São Paulo, quinta-feira, 08 de junho de 2006

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NINA HORTA

O fruto que nasce entre pedras

Uma árvore carregada de frutos é certamente manifestação de algum mistério

NA SEMANA passada, li uma boa matéria, aqui na Folha, de Ana Paula Carradini. O título: "Figo da Palestina redefine data inicial da agricultura". E os subtítulos: "Árvore foi domesticada há 11,4 mil anos, quase um milênio antes do trigo e da cevada".
Não sei por que aquela figueira velhíssima me bateu nas entranhas, tive saudade dela. Gente é mesmo uma raça sem-vergonha, vive pelos cantos se queixando da vida, procurando pêlo em ovo, quando tem todos os frutos proibidos e permitidos ao alcance da mão. Nada mais nos assombra, e uma árvore carregada de frutos é certamente manifestação de algum mistério.
Com o artigo sobre a figueira tive um breve momento de lucidez e fui logo aos dicionários... fícus, fícus carica, provavelmente encontrado no Éden. Ou silvestres, na Arábia.
Brotam onde alguém cospe uma semente, principalmente entre duas pedras, adoram nascer entre duas pedras. São parentes da fruta-pão (por esta ninguém esperava). Crescem melhor nos países das amêndoas, das oliveiras, das laranjas. Não são frutas como as outras -as flores estão dentro da fruta.
Muito mais gostosos se amadurecem no pé e se são comidos logo depois de apanhados, ainda mornos de sol. Na maioria dos países mediterrâneos é tradição que aquele que passa pode colher um figo de árvore que não é sua, mas nada de sacolas. A folha de louro que se vê numa caixa de figos secos de Esmirna evita o gorgulho. Ou o caruncho? Bem, evita que se estraguem. E pode ser que os recheassem com nozes ou ricota de cabra...
Mas voltemos ao artigo da Folha, ao figo de 11 mil anos que me deu a nostalgia da ur-figueira. Antes era difícil descobrir nas escavações figos tão velhos, porque os restos de comida são pequenos demais e passam batidos. Mas, agora, são submetidos à flotação. O que quer dizer, acho, que a terra é posta na água e que os carvõezinhos bóiam. E há especialistas em carvão arqueológico, os antrocólogos, que acabam descobrindo figos antiqüíssimos (cada vez mais antigos, conforme melhora a antrocologia), e vão assim empurrando para trás os primórdios da agricultura.
Fiquei imaginando que, se lerdos para perceber o milagre do figo, os homens são rápidos nas invenções de como comer a fruta. Fui procurar receitas na porta da geladeira de 11 mil anos e comecei por um livro persa. A primeira coisa de que tratam é sobre as qualidades de frio ou quente das frutas (o que não tem nada a ver com sua temperatura), de suma importância para o equilíbrio das refeições e controle de doenças, pois pessoas de temperamento frio devem comer alimentos quentes, e vice-versa.
Daí foi só copiar o Pedro Nava, que explica isto direitinho. "[Justina] era freqüentemente consultada pelas patroas sobre a natureza quente ou fria do que se ia comer -para não deixar assanhar as entranhas e encher a pele de urticária e de espinhas. Justina, mamão é quente ou frio? Que mamão, sinhá?
Esses amarelos aí da chácara, comidos maduros, são frios; apanhados verdes, para fazer doce, são quentes. Agora, mamão vermelho, esses que chamam de baiano e que tem na casa do Gonçalves, é sempre quente... Laranja seleta era quente. Laranja serra d'água, fria. Jaca, abacate, manga, cajá-açu, cabeluda, araçá, grumixama, jatobá -quente.
Abóbora -quente. Lima, carambola, cajá-mirim, chuchu, abobrinha, -frio. Coco? Depende. A água do verde é fria, a do seco, quente. Já o miolo, mole ou maduro, é sempre quente."
Vou ter que parar a citação por aí, me perdoem Galeno e Hipócrates, muito interessantes estas tradições, mas, acreditem, o livro persa diz que figo é quente, vê lá se pode, eu poderia jurar que era frio, tem a maior cara de.

@ - ninahorta@uol.com.br


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