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A pátria de chuteiras e o centroavante que faz gols
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Você quer um centroavante
para fazer gols ou casar com
sua filha? Essa pergunta de
João Saldanha volta à atualidade, no momento em que Romário foi cortado da seleção
brasileira.
Antes mesmo de se conhecerem todos os detalhes da contusão, uma pesquisa revelou
que a maioria dos paulistas
queria que Romário fosse cortado.
O índice obtido pelo corte
não é um acidente. São Paulo é
o centro da produção industrial do Brasil. A palavra eficiência foi sempre cultivada e,
no contexto industrial, decorre
da disciplina e regularidade.
Romário não parece regular
nem muito disciplinado. Todos os chefes de departamento
pessoal querem vê-lo pelas costas. Exceto talvez os do Vale do
Silício, na Califórnia, que preferem a centelha da criatividade ao diploma de bom comportamento.
Os adeptos do corte de Romário repetem a velha história: o que vale é a equipe, ninguém é insubstituível, nada de
estrelas.
Acontece que o futebol cria
estrelas, e, de um modo geral,
são os que fazem gol, que jogam lá na frente. Heleno de
Freitas, Carlyle Guimarães são
apenas alguns dos centroavantes que se tornaram ídolos no
passado. Ambos eram figuras
controvertidas. Mas faziam
gols, e isso, no fundo, era o que
interessava à torcida.
O sonho de uma equipe homogênea, em que ninguém se
destaque, todos sejam intercambiáveis, é um sonho que os
comunistas também acalentaram no esporte, como uma decorrência de sua visão política.
O pior é que defendiam essas
teses enquanto o culto da personalidade tornava-se o fator
determinante no centro do poder: Stálin, Mao, Fidel, Tito
brilharam intensamente enquanto os rivais eram banidos
da foto oficial.
Na última Copa do Mundo,
Romário foi convocado e decidiu a partida com o Uruguai,
dissipando as dúvidas de Zagallo sobre sua competência.
Apenas um registro: Zagallo
duvidava de Romário antes da
Copa, e o atacante foi considerado o melhor do mundo.
Jamais ouvi uma avaliação
crítica dessa indecisão. Zagallo se comportou como se fosse
admirador de Romário desde
criancinha. Detesto análises
selvagens, mas Zagallo, quando era jogador, era chamado
de Formiguinha -fazia um
esforço gigantesco unindo defesa e ataque. Às vezes, numa
só jogada, Pelé e Garrincha ganhavam mais aplausos do que
o trabalho anual de nossa Formiguinha. É razoável que ele
tenha um pé atrás com os
grandes craques.
O corte de Romário não apenas traz à cena a política da
formiguinha contra a cigarra,
ela criou uma imensa coalizão
dos que admiram a disciplina,
o bom-mocismo, o craque que
dedica os gols aos recém-nascidos. Bebeto no lugar de Romário era um programa natural
de quem quer fortalecer o espírito de equipe, incentivar o
trabalho cotidiano, advertir
pedagogicamente os indivíduos criativos.
Quem sou eu para questionar
essa tendência brasileira? Vocês querem Bebeto, terão Bebeto. Fico apenas apreensivo
quando uma sociedade se rende a esses valores da disciplina
e espírito de equipe. Isso é fundamental num currículo de
quem busca emprego. Mas os
empregos estão sumindo, e os
trabalhadores estão sendo forçados a criar um novo caminho, a combinar múltiplos
trampos, a esquecer a idéia de
carreira em que se progride
passo a passo, capitão, tenente,
major...
A extraordinária simpatia
que se dedica a Romário no
Rio poderia ser interpretada
como uma reação pré-industrial, hedonista, uma espécie
de pacto de biscateiros para
sabotar o relógio de ponto, a
regularidade na produção. Devotos da fugacidade de uma
jogada genial, os fãs de Romário não conseguem vislumbrar
a importância do treino, do sacrifício, a superioridade da
transpiração sobre a inspiração.
O futuro vai esclarecer muitas dessas dúvidas. Romário
pode se recuperar nos próximos dias. Bebeto pode devolver
ao Brasil sua imagem de regularidade e disciplina. A vaca
pode ir para o brejo e, subitamente, se compreender a dureza da decisão de cortar Romário. Tudo pode acontecer numa Copa do Mundo, até uma
disputa entre Brasil e Alemanha sem que você possa distinguir qual é o Brasil, qual é a
Alemanha.
No longo reinado de Zagallo,
o Brasil fez todo o esforço para
instalar a eficiência e parecer
uma equipe européia, de Primeiro Mundo. Ironicamente,
apesar de termos perdido para
a Noruega, os outros que nos
derrotaram foram a Argentina
e a Nigéria. Essa última nos
bateu nos Estados Unidos com
uma velocidade e alegria que
nos fez sentir saudade de nós
mesmos.
Essa lentidão ao passar da
defesa para o ataque, o desequilíbrio provocado pelo congestionamento no lado esquerdo, os buracos que se abrem na
defesa, onde os zagueiros não
têm velocidade -pode ser que
esses defeitos sejam apenas
uma impressão. O controle de
qualidade de nossa fábrica de
futebol vai colocar tudo nos
seus lugares, embora as próprias fábricas estejam perdendo seu espaço, num mundo onde a inteligência desloca o esforço físico.
A pátria de chuteiras, como a
descrevia Nélson Rodrigues,
deve sobreviver, como sobreviveu ao Médici -que detestava
o Jairzinho, sob o argumento
de que jogava de cabeça baixa-, como sobreviveu às pressões para a escalação de Dario.
João Saldanha tinha razão. É
preciso convocar um centroavante que faça gols. Marido
para a filha teremos de buscar
nos bons escritórios da cidade.
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