São Paulo, segunda, 8 de junho de 1998

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A pátria de chuteiras e o centroavante que faz gols

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Você quer um centroavante para fazer gols ou casar com sua filha? Essa pergunta de João Saldanha volta à atualidade, no momento em que Romário foi cortado da seleção brasileira.
Antes mesmo de se conhecerem todos os detalhes da contusão, uma pesquisa revelou que a maioria dos paulistas queria que Romário fosse cortado.
O índice obtido pelo corte não é um acidente. São Paulo é o centro da produção industrial do Brasil. A palavra eficiência foi sempre cultivada e, no contexto industrial, decorre da disciplina e regularidade.
Romário não parece regular nem muito disciplinado. Todos os chefes de departamento pessoal querem vê-lo pelas costas. Exceto talvez os do Vale do Silício, na Califórnia, que preferem a centelha da criatividade ao diploma de bom comportamento.
Os adeptos do corte de Romário repetem a velha história: o que vale é a equipe, ninguém é insubstituível, nada de estrelas.
Acontece que o futebol cria estrelas, e, de um modo geral, são os que fazem gol, que jogam lá na frente. Heleno de Freitas, Carlyle Guimarães são apenas alguns dos centroavantes que se tornaram ídolos no passado. Ambos eram figuras controvertidas. Mas faziam gols, e isso, no fundo, era o que interessava à torcida.
O sonho de uma equipe homogênea, em que ninguém se destaque, todos sejam intercambiáveis, é um sonho que os comunistas também acalentaram no esporte, como uma decorrência de sua visão política.
O pior é que defendiam essas teses enquanto o culto da personalidade tornava-se o fator determinante no centro do poder: Stálin, Mao, Fidel, Tito brilharam intensamente enquanto os rivais eram banidos da foto oficial.
Na última Copa do Mundo, Romário foi convocado e decidiu a partida com o Uruguai, dissipando as dúvidas de Zagallo sobre sua competência. Apenas um registro: Zagallo duvidava de Romário antes da Copa, e o atacante foi considerado o melhor do mundo.
Jamais ouvi uma avaliação crítica dessa indecisão. Zagallo se comportou como se fosse admirador de Romário desde criancinha. Detesto análises selvagens, mas Zagallo, quando era jogador, era chamado de Formiguinha -fazia um esforço gigantesco unindo defesa e ataque. Às vezes, numa só jogada, Pelé e Garrincha ganhavam mais aplausos do que o trabalho anual de nossa Formiguinha. É razoável que ele tenha um pé atrás com os grandes craques.
O corte de Romário não apenas traz à cena a política da formiguinha contra a cigarra, ela criou uma imensa coalizão dos que admiram a disciplina, o bom-mocismo, o craque que dedica os gols aos recém-nascidos. Bebeto no lugar de Romário era um programa natural de quem quer fortalecer o espírito de equipe, incentivar o trabalho cotidiano, advertir pedagogicamente os indivíduos criativos.
Quem sou eu para questionar essa tendência brasileira? Vocês querem Bebeto, terão Bebeto. Fico apenas apreensivo quando uma sociedade se rende a esses valores da disciplina e espírito de equipe. Isso é fundamental num currículo de quem busca emprego. Mas os empregos estão sumindo, e os trabalhadores estão sendo forçados a criar um novo caminho, a combinar múltiplos trampos, a esquecer a idéia de carreira em que se progride passo a passo, capitão, tenente, major...
A extraordinária simpatia que se dedica a Romário no Rio poderia ser interpretada como uma reação pré-industrial, hedonista, uma espécie de pacto de biscateiros para sabotar o relógio de ponto, a regularidade na produção. Devotos da fugacidade de uma jogada genial, os fãs de Romário não conseguem vislumbrar a importância do treino, do sacrifício, a superioridade da transpiração sobre a inspiração.
O futuro vai esclarecer muitas dessas dúvidas. Romário pode se recuperar nos próximos dias. Bebeto pode devolver ao Brasil sua imagem de regularidade e disciplina. A vaca pode ir para o brejo e, subitamente, se compreender a dureza da decisão de cortar Romário. Tudo pode acontecer numa Copa do Mundo, até uma disputa entre Brasil e Alemanha sem que você possa distinguir qual é o Brasil, qual é a Alemanha.
No longo reinado de Zagallo, o Brasil fez todo o esforço para instalar a eficiência e parecer uma equipe européia, de Primeiro Mundo. Ironicamente, apesar de termos perdido para a Noruega, os outros que nos derrotaram foram a Argentina e a Nigéria. Essa última nos bateu nos Estados Unidos com uma velocidade e alegria que nos fez sentir saudade de nós mesmos.
Essa lentidão ao passar da defesa para o ataque, o desequilíbrio provocado pelo congestionamento no lado esquerdo, os buracos que se abrem na defesa, onde os zagueiros não têm velocidade -pode ser que esses defeitos sejam apenas uma impressão. O controle de qualidade de nossa fábrica de futebol vai colocar tudo nos seus lugares, embora as próprias fábricas estejam perdendo seu espaço, num mundo onde a inteligência desloca o esforço físico.
A pátria de chuteiras, como a descrevia Nélson Rodrigues, deve sobreviver, como sobreviveu ao Médici -que detestava o Jairzinho, sob o argumento de que jogava de cabeça baixa-, como sobreviveu às pressões para a escalação de Dario.
João Saldanha tinha razão. É preciso convocar um centroavante que faça gols. Marido para a filha teremos de buscar nos bons escritórios da cidade.



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