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ARNALDO JABOR
"Star Wars" só paga mil para entrar no Brasil
Sabem quanto "Star Wars"
vai pagar para entrar no Brasil? Uma pechincha: R$ 1.090.
Isso mesmo. R$ 1.090. Sabem
com quantas cópias o filme será lançado? Quatrocentas.
Qual o potencial de renda? Cerca de US$ 12 milhões a US$ 15
milhões o sr. George Lucas vai
gerar, só na bilheteria, sem
contar os lucros em merchandising. O Brasil gasta, por ano,
US$ 680 milhões para importar
produtos audiovisuais e exporta menos de US$ 40 milhões.
Nosso déficit na balança externa é de US$ 640 milhões. Sabem
quantos filmes brasileiros estão
prontos, esperando uma "telinha" livre para passar? Trinta e
cinco filmes, sem data, se é que
serão exibidos, algum dia.
Sabem vocês -ó amantes
imaginários de Sharon Stone, ó
fãs enrustidos de Rambo e Bruce Willis- que o cinema brasileiro só ocupa 5% das salas de
exibição, enquanto nos anos 70
chegamos a ter 30% das salas,
com sucesso. É justo isso? Esta
semana, os magnatas do aço
americano acusaram formalmente o Brasil de "dumping"
contra sua "pobre" indústria de
laminados finos, sem contar as
sobretaxas "ecológicas" já existentes contra as nossas laranjas,
carnes e os impostos contra sapatos aqui dos "emergentes".
E, sempre que falamos em proteger o mercado de cinema, nossa imprensa grita, como se isso
fosse uma violência ou arcaísmo nestes tempos neoliberais,
quando só os "underdog countries" pagam a conta da "globalização": "Xiii... lá vêm aqueles
comunistas falar em reserva de
mercado, em quota de tela de
novo...". E jorram a lista de argumentos a favor da cultura
"global", contra nossa xenofobia e contra, claro, o odiado cinema do Brasil, "que só mostra
coisas tristes, que não tem qualidade técnica etc.".
A isso, o secretário do Audiovisual, dr. José Alvaro Moises,
responde: "É uma enorme bobagem, ingenuidade e desinformação dizer que o que torna um
produto competitivo no mercado é apenas a qualidade. Temos
de ter uma política de proteção
ao produto nacional, como tem,
por exemplo, a indústria automobilística, que pode importar
peças com isenção fiscal".
O Brasil, gente boa, não pode
cobrar taxas pelos filmes importados, pois o Gatt, o acordo internacional de comércio, espertamente regulou isso há décadas, proibindo-nos de taxar filme impresso. Só podemos criar
gravames sobre filme virgem, o
que encarece nossa produção.
Existe também uma lei de proteção que obriga os exibidores a
passar 49 dias por ano de filmes
brasileiros. A imprensa aplaude
os donos de cinemas que não
cumprem a lei: "Muito bem! Pela livre cultura pós-moderna,
não passem filmes brasileiros!".
Estimulam a contravenção para usufruírem em paz seus sonhos (vejam a palavra antiga...)
"colonizados".
Há pouco, o Ministério da
Cultura pensou em aumentar a
taxa de entrada dos filmes estrangeiros, para desestimular a
invasão de abacaxis de segunda
categoria que cada "blockbuster" arrasta atrás de si, como a
cauda suja de cometas. Pra quê?
Na mesma hora, nossos amigos
do Norte, os sócios do novo
mundo aberto (sic), nossos parceiros na economia pan-americana, correram para Brasília
para impedir qualquer mexida
na maionese atual.
Eu sei... sei que o leitor já deve
estar arrojando o jornal para
longe. O discurso da proteção
nacional (não do nacionalismo
babaca e antigo) provoca bocejos e uivos de protesto dos
amantes de Robin Williams. Há
dois anos, eu comentei a festa
do Oscar e falei que Robin Williams era canastrão. Parecia
que tinha dito que Jesus Cristo
não era o filho de Deus. Milhares de e-mails aportaram na
TV, pedindo minha cabeça na
bandeja. Naqueles dias, descobri a verdade brutal: para nós, o
cinema americano já é religião,
com papa, cardeais e coroinhas,
enquanto a cultura brasileira
(lembra dela?) desbota como fotografia de época.
Espantosamente, a mesma
imprensa que louva a contravenção contra a lei de reserva de
mercado fala, com olhos em alvo e boquinha de êxtase, nos
prêmios do cinema brasileiro, se
orgulha de "Central do Brasil",
dos nossos gols em Cannes e
Berlim, contribuindo assim para a grande ilusão que ataca os
próprios cineastas. O cineasta,
meus amigos, é um ser desesperado; ele quer fazer o filme e vê-lo brilhando na tela, mesmo que
seja num "poeira" sinistro, em
horário quebrado.
O cineasta acaba se conformando com essa situação, típica do Brasil atual, em que a
aparência substitui a realidade.
A Lei do Audiovisual é muito
boa, mas só resolve parte do
problema: a produção. Distribuição e exibição continuam
inexistentes. O difícil, o complicado, o que toca na nossa delicada situação política de país
dependente, fica esquecido e
maquiado pelo tal mito do "renascimento", quando a realidade é uma só: não há cinema sem
mercado interno, não há cinema em país "sub" sem uma lei
de amparo estatal.
Uma cinematografia apoiada
em uma só perna da cadeia produtiva cria um cinema perverso: orçamentos cada vez mais
altos para os produtores se pagarem a priori, filmes desobrigados da necessidade de exibição comercial (pois todos sabem
que a equação não fecha), oportunismo de picaretas arrivistas,
falsos niilismos artísticos em
autores deprimidos ou filmes
que se preocupam com o puro
"travestimento" formal para
"penetrarem" no mercado internacional (grande sonho para
poucos), disfarçados de produtos feitos "lá fora".
A perversão do filme brasileiro é dramática porque ilude os
cineastas em seus sonhos artísticos, ilude o público com um
papo meio evangélico de "ressurreição" e legitima nossa situação absurda, à luz do sagrado capitalismo pós-moderno:
uma produção artística masoquista, uma atividade comercial que não visa ao mercado,
um investimento que não se paga. Esta é a verdade: nas regras
do jogo atual, nenhum filme
brasileiro se paga no mercado
interno.
Vivemos pelos filmes de exceção, por talento, sorte ou competência profissional antiga, de
acasos ou de dificultosas montagens como o "Central do Brasil" ou "Orfeu". Vivemos cultivando essa ilusão de uma "trickle down economics", de que alguma migalha de progresso vai
sobrar para nós, um dia. Com
tantos "multiplexes" ou cinemas de shoppings sendo construídos, nosso mercado crescerá
-pensamos com esperança
("by the way", essas centenas de
salas americanas estão sendo
construídas aqui com empréstimos do Tesouro americano a
2% ao ano. Cinema para eles é
segurança nacional).
Não vai "escorrer" migalha alguma se não protegermos nosso
acesso ao mercado interno. O
escândalo das ilusões já está
chegando a setores políticos que
querem ajudar a nossa legislação, como o senador Francelino
Pereira, que pensou: "Que cinema é esse?".
E, afinal, o que fazer? Fazer
como a China que está dando
um show de qualidade com seus
filmes no mundo, mas que mantém a importação de fitas americanas limitadas a 23 por ano?
(O Jack Valenti estava lá, puxando o saco da burocracia, para abrir o mercado chinês.) Ou
fazer como o Irã, que proíbe importações? Outro dia, jogaram
cobras numa sessão secreta de
um filme de Hollywood.
Claro que não há clima político para uma guerra santa contra estrangeiros. Seria ridículo e
não seria uma solução. Mas está na hora de repolirmos velhos
slogans, está na hora de acabarmos com esse oportunismo de
descolar uma grana para fazer
qualquer coisa que justifique
uma profissão, pagando "rebates" ("kickbacks") para corretores, está na hora de acabar com
essa ilusão à toa de que o cinema do Brasil está "numa boa".
Está na hora, sim, de a classe
voltar a se reunir, nas velhas lutas de defesa da atividade. O individualismo melancólico ou
oportunista deve acabar. A solução não é guerra, mas não pode ser essa paz vergonhosa. Como me disse Carlos Diegues outro dia, não dá para punir os
exibidores ou importadores estrangeiros, mas está na hora de
encontrarmos uma forma de
convivência, uma forma de estimular e talvez premiar a exibição de filmes nacionais.
Está na hora de fazer o cinema
americano moderar seus interesses aqui, está na hora de os
dirigentes da Motion Pictures,
como o bom Steve Solot, herdeiro de Harry Stone, "live up to"
(fazerem jus) ao lero-lero
("bullshit") ideológico que o
Consenso de Washington empurra em nossos "hearts and
minds": cooperação para o desenvolvimento, capitalismo associativo, mercados abertos em
doce convívio democrático. Porque "Star Wars" entrar aqui pagando R$ 1.090 e levando milhões de dólares pode ser tudo,
menos democracia.
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