São Paulo, Terça-feira, 08 de Junho de 1999
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ARNALDO JABOR
"Star Wars" só paga mil para entrar no Brasil


Sabem quanto "Star Wars" vai pagar para entrar no Brasil? Uma pechincha: R$ 1.090. Isso mesmo. R$ 1.090. Sabem com quantas cópias o filme será lançado? Quatrocentas. Qual o potencial de renda? Cerca de US$ 12 milhões a US$ 15 milhões o sr. George Lucas vai gerar, só na bilheteria, sem contar os lucros em merchandising. O Brasil gasta, por ano, US$ 680 milhões para importar produtos audiovisuais e exporta menos de US$ 40 milhões. Nosso déficit na balança externa é de US$ 640 milhões. Sabem quantos filmes brasileiros estão prontos, esperando uma "telinha" livre para passar? Trinta e cinco filmes, sem data, se é que serão exibidos, algum dia.
Sabem vocês -ó amantes imaginários de Sharon Stone, ó fãs enrustidos de Rambo e Bruce Willis- que o cinema brasileiro só ocupa 5% das salas de exibição, enquanto nos anos 70 chegamos a ter 30% das salas, com sucesso. É justo isso? Esta semana, os magnatas do aço americano acusaram formalmente o Brasil de "dumping" contra sua "pobre" indústria de laminados finos, sem contar as sobretaxas "ecológicas" já existentes contra as nossas laranjas, carnes e os impostos contra sapatos aqui dos "emergentes".
E, sempre que falamos em proteger o mercado de cinema, nossa imprensa grita, como se isso fosse uma violência ou arcaísmo nestes tempos neoliberais, quando só os "underdog countries" pagam a conta da "globalização": "Xiii... lá vêm aqueles comunistas falar em reserva de mercado, em quota de tela de novo...". E jorram a lista de argumentos a favor da cultura "global", contra nossa xenofobia e contra, claro, o odiado cinema do Brasil, "que só mostra coisas tristes, que não tem qualidade técnica etc.".
A isso, o secretário do Audiovisual, dr. José Alvaro Moises, responde: "É uma enorme bobagem, ingenuidade e desinformação dizer que o que torna um produto competitivo no mercado é apenas a qualidade. Temos de ter uma política de proteção ao produto nacional, como tem, por exemplo, a indústria automobilística, que pode importar peças com isenção fiscal".
O Brasil, gente boa, não pode cobrar taxas pelos filmes importados, pois o Gatt, o acordo internacional de comércio, espertamente regulou isso há décadas, proibindo-nos de taxar filme impresso. Só podemos criar gravames sobre filme virgem, o que encarece nossa produção.
Existe também uma lei de proteção que obriga os exibidores a passar 49 dias por ano de filmes brasileiros. A imprensa aplaude os donos de cinemas que não cumprem a lei: "Muito bem! Pela livre cultura pós-moderna, não passem filmes brasileiros!". Estimulam a contravenção para usufruírem em paz seus sonhos (vejam a palavra antiga...) "colonizados".
Há pouco, o Ministério da Cultura pensou em aumentar a taxa de entrada dos filmes estrangeiros, para desestimular a invasão de abacaxis de segunda categoria que cada "blockbuster" arrasta atrás de si, como a cauda suja de cometas. Pra quê? Na mesma hora, nossos amigos do Norte, os sócios do novo mundo aberto (sic), nossos parceiros na economia pan-americana, correram para Brasília para impedir qualquer mexida na maionese atual.
Eu sei... sei que o leitor já deve estar arrojando o jornal para longe. O discurso da proteção nacional (não do nacionalismo babaca e antigo) provoca bocejos e uivos de protesto dos amantes de Robin Williams. Há dois anos, eu comentei a festa do Oscar e falei que Robin Williams era canastrão. Parecia que tinha dito que Jesus Cristo não era o filho de Deus. Milhares de e-mails aportaram na TV, pedindo minha cabeça na bandeja. Naqueles dias, descobri a verdade brutal: para nós, o cinema americano já é religião, com papa, cardeais e coroinhas, enquanto a cultura brasileira (lembra dela?) desbota como fotografia de época.
Espantosamente, a mesma imprensa que louva a contravenção contra a lei de reserva de mercado fala, com olhos em alvo e boquinha de êxtase, nos prêmios do cinema brasileiro, se orgulha de "Central do Brasil", dos nossos gols em Cannes e Berlim, contribuindo assim para a grande ilusão que ataca os próprios cineastas. O cineasta, meus amigos, é um ser desesperado; ele quer fazer o filme e vê-lo brilhando na tela, mesmo que seja num "poeira" sinistro, em horário quebrado.
O cineasta acaba se conformando com essa situação, típica do Brasil atual, em que a aparência substitui a realidade. A Lei do Audiovisual é muito boa, mas só resolve parte do problema: a produção. Distribuição e exibição continuam inexistentes. O difícil, o complicado, o que toca na nossa delicada situação política de país dependente, fica esquecido e maquiado pelo tal mito do "renascimento", quando a realidade é uma só: não há cinema sem mercado interno, não há cinema em país "sub" sem uma lei de amparo estatal.
Uma cinematografia apoiada em uma só perna da cadeia produtiva cria um cinema perverso: orçamentos cada vez mais altos para os produtores se pagarem a priori, filmes desobrigados da necessidade de exibição comercial (pois todos sabem que a equação não fecha), oportunismo de picaretas arrivistas, falsos niilismos artísticos em autores deprimidos ou filmes que se preocupam com o puro "travestimento" formal para "penetrarem" no mercado internacional (grande sonho para poucos), disfarçados de produtos feitos "lá fora".
A perversão do filme brasileiro é dramática porque ilude os cineastas em seus sonhos artísticos, ilude o público com um papo meio evangélico de "ressurreição" e legitima nossa situação absurda, à luz do sagrado capitalismo pós-moderno: uma produção artística masoquista, uma atividade comercial que não visa ao mercado, um investimento que não se paga. Esta é a verdade: nas regras do jogo atual, nenhum filme brasileiro se paga no mercado interno.
Vivemos pelos filmes de exceção, por talento, sorte ou competência profissional antiga, de acasos ou de dificultosas montagens como o "Central do Brasil" ou "Orfeu". Vivemos cultivando essa ilusão de uma "trickle down economics", de que alguma migalha de progresso vai sobrar para nós, um dia. Com tantos "multiplexes" ou cinemas de shoppings sendo construídos, nosso mercado crescerá -pensamos com esperança ("by the way", essas centenas de salas americanas estão sendo construídas aqui com empréstimos do Tesouro americano a 2% ao ano. Cinema para eles é segurança nacional).
Não vai "escorrer" migalha alguma se não protegermos nosso acesso ao mercado interno. O escândalo das ilusões já está chegando a setores políticos que querem ajudar a nossa legislação, como o senador Francelino Pereira, que pensou: "Que cinema é esse?".
E, afinal, o que fazer? Fazer como a China que está dando um show de qualidade com seus filmes no mundo, mas que mantém a importação de fitas americanas limitadas a 23 por ano? (O Jack Valenti estava lá, puxando o saco da burocracia, para abrir o mercado chinês.) Ou fazer como o Irã, que proíbe importações? Outro dia, jogaram cobras numa sessão secreta de um filme de Hollywood.
Claro que não há clima político para uma guerra santa contra estrangeiros. Seria ridículo e não seria uma solução. Mas está na hora de repolirmos velhos slogans, está na hora de acabarmos com esse oportunismo de descolar uma grana para fazer qualquer coisa que justifique uma profissão, pagando "rebates" ("kickbacks") para corretores, está na hora de acabar com essa ilusão à toa de que o cinema do Brasil está "numa boa".
Está na hora, sim, de a classe voltar a se reunir, nas velhas lutas de defesa da atividade. O individualismo melancólico ou oportunista deve acabar. A solução não é guerra, mas não pode ser essa paz vergonhosa. Como me disse Carlos Diegues outro dia, não dá para punir os exibidores ou importadores estrangeiros, mas está na hora de encontrarmos uma forma de convivência, uma forma de estimular e talvez premiar a exibição de filmes nacionais.
Está na hora de fazer o cinema americano moderar seus interesses aqui, está na hora de os dirigentes da Motion Pictures, como o bom Steve Solot, herdeiro de Harry Stone, "live up to" (fazerem jus) ao lero-lero ("bullshit") ideológico que o Consenso de Washington empurra em nossos "hearts and minds": cooperação para o desenvolvimento, capitalismo associativo, mercados abertos em doce convívio democrático. Porque "Star Wars" entrar aqui pagando R$ 1.090 e levando milhões de dólares pode ser tudo, menos democracia.


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