São Paulo, quarta-feira, 08 de julho de 2009

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MARCELO COELHO

Otimismo musical


"O Resto É Ruído", de Alex Ross, reescreve a história da música clássica no século 20


A HISTÓRIA da arte moderna tem suas datas decisivas e incontornáveis. Pelo tumulto que se criou, a estreia da "Sagração da Primavera", de Igor Stravinski inscreve o dia 29 de maio de 1913 como o verdadeiro início da música do século 20, e todo historiador é forçado a repetir pela enésima vez o relato daquele grande escândalo.
Não é o menor mérito de Alex Ross, crítico musical da revista "New Yorker", o fato de que começa seu livro sobre a música clássica no século 20 com outra data, outra estreia, e outros personagens.
"O Resto é Ruído", um esplêndido volume de 679 páginas, escolhe uma outra cena de abertura para a história da música moderna. Trata-se da estreia de "Salomé", ópera de Richard Strauss, no dia 16 de maio de 1909. Na plateia, estavam figuras como Puccini, Schoenberg e Mahler. Acredita-se, mas não está confirmado, que o jovem Hitler compareceu também.
Foi um sucesso estrondoso, apesar das dissonâncias da música de Strauss. Muitos outros sucessos de público e de crítica aparecem nas páginas de "O Resto é Ruído".
"Wozzeck", de Alban Berg (uma ópera moderníssima, que confesso dura de engolir) foi tão aplaudida que seu compositor entrou em crise depois do espetáculo. "Estive com ele até de madrugada", conta o filósofo Adorno, "consolando-o por seu sucesso".
Mesmo a "Sagração da Primavera", depois do escândalo inicial, foi bem recebida nas noites seguintes; e Alex Ross não deixa de registrar que, na noite da estreia, Stravinski foi chamado ao palco várias vezes para agradecer os aplausos, obviamente misturados às vaias, de um público mais heterogêneo do que se pensa.
"O Resto é Ruído" parece marcar uma virada no modo com que entendemos a música do século 20.
Aí, pelas décadas de 1950 e 1960, toda a história da música moderna poderia resumir-se num progressivo afastamento entre os compositores e o público. Compositores como Stockhausen, Luigi Nono e Pierre Boulez inventavam partituras inacessíveis, para apreciação exclusiva de quem tivesse pós-graduação em teoria musical.
Nada disso, afirma Alex Ross: talvez o sentido de toda a história seja bem outro. Uma convergência crescente entre "música popular" e "clássica" pode ser percebida nas entrelinhas da velha luta dos compositores eruditos contra a cultura de massa.
Passa pela música de Sibelius, de Gershwin, de Britten, de Krenek, até desaguar nos minimalistas e pós-modernos que surgiram a partir da década de 70. Alex Ross é especialmente persuasivo quando mostra, por exemplo, as influências do moderno Alban Berg sobre a música, muito mais "fácil", de Gershwin.
Uma das vantagens do seu livro é que ele evita totalmente a linguagem técnica, sem deixar de descrever "por dentro" as obras. Ross tem um gênio para a metáfora. Sobre a música de Janacek, por exemplo, o autor diz que "os ritmos lembram a agulha de um gramofone, ora saltando, como se os sulcos do disco os aprisionassem, ora ficando mais lentos, como se alguém brincasse com a velocidade da rotação".
O leitor fica com vontade de conhecer obras que o afugentavam terrivelmente.
Mais do que isso: Ross tem um ouvido atento para o contexto político em que viviam os compositores -e isso não se restringe ao caso famoso de Chostakóvitch, pressionado insuportavelmente pela burocracia stalinista, no sentido de fazer sinfonias de imediato agrado popular.
Os mais exacerbados vanguardistas da década de 50, que se empenhavam no sentido inverso, obtinham apoio do governo americano; enquanto isso, o esquerdista Aaron Copland via sua estrela declinar quando o "New Deal" de Roosevelt ia passando para a história.
O fim da Guerra Fria talvez tenha significado, nesse estrito âmbito da política musical, um período de degelo. Não é por acaso que a ópera "Nixon in China", de John Adams, que estreou em 1987, aparece no livro de Ross como um marco histórico equivalente a "Porgy and Bess", de George Gershwin.
"O Resto É Ruído" é um livro do mais resoluto otimismo. A história da música, assim como a história humana, não é um jogo de cartas marcadas. Está a ser reinventada a cada dia -e é um prazer acompanhar, no fluente estilo do autor, cada ato dessa aventura sem fim.
PS- Férias. Volto no dia 19 de agosto.


coelhofsp@uol.com.br




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