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São Paulo, sexta-feira, 08 de agosto de 2003

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CINEMA/ESTRÉIAS

"DIRIGINDO NO ESCURO"

Diretor se repete (bem) nas dúvidas sobre si mesmo

Medo da impostura move novo filme de Woody Allen

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Diretores de cinema não são muito diferentes dos prestidigitadores. Ambos vivem de seus truques, como bem sabia Orson Welles (que acumulava as duas funções). E ambos correm o risco de ser desmascarados a qualquer momento.
É essa, em linhas gerais, a idéia de "Dirigindo no Escuro". Woody Allen aqui é Val Waxman, realizador com dois Oscars, muito prestígio e nenhum futuro: não filma há dez anos, tornou-se famoso por suas manias e estouros de orçamento.
Por interferência de sua ex-mulher, Ellie, ele consegue um filme para fazer, para o estúdio chefiado pelo atual marido de Ellie. Ou seja, a coisa já não começa bem. Vai piorar muito mais, pois a primeira providência de Val, às vésperas da filmagem, é passar a sofrer de cegueira psicológica.
Como não pode perder a oportunidade, Val (com a ajuda providencial do seu agente) buscará, e achará, meios de realizar um filme sem ver o que está filmando.
Seria possível esperar que desse ponto de partida surgisse um filme engraçado, mas não é o que acontece. As piadas de Woody Allen hoje em dia parecem, quase sempre, variações de outras que já conhecemos. Em certos momentos, elas conseguem arrancar risos, mas não tantos assim. No mais, os atores de Woody Allen têm a capacidade (que não vem de hoje, aliás) de assimilar a entonação e a gesticulação de Woody Allen, o que é no mínimo problemático.
Talvez isso não seja motivo para tirar o filme do roteiro tão já. Na vida nem tudo são risos, e "Dirigindo no Escuro" pode ser visto como sequência de uma linha desenvolvida por Allen desde, pelo menos, "Tiros na Broadway", há dez anos.
São filmes sobre a suspeita que o artista alimenta a respeito de si mesmo, em diversos níveis. Em "Tiros na Broadway", abordava-se a dramaturgia. Em "Dirigindo", a mise-en-scène propriamente dita. Como Val fica cego, é o artista como impostor que o filme aborda -algo ainda mais acentuado no cinema, onde uma série de variáveis não custa a escapar ao controle do diretor, de tal modo que dirigir às cegas está longe de ser uma experiência inédita no ramo.
Admita-se que "Dirigindo no Escuro" exagera um tanto na dose, de forma que às vezes parece mais um filme de Mel Brooks: a paródia de uma filmagem feita pela caricatura de um autor (ou "auteur", em francês, como fala o produtor, com um misto de desprezo e desconforto).
Por vários motivos, esse é um filme secundário de Woody Allen. Talvez o principal deles seja que, ao contrário de Val, Woody não sente tão profundamente o medo de ser desmascarado e aceita retomar uns tantos tiques há anos presentes em sua obra. Mas certa preguiça na realização não impede o prazer de acompanhar a reflexão sobre o ato de filmar que ali se desenvolve.


Dirigindo no Escuro
Hollywood Ending
   
Produção: EUA, 2002
Direção: Woody Allen
Com: Woody Allen, Téa Leoni, George Hamilton
Onde: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Cine Morumbi, Iguatemi, Pátio Higienópolis e circuito



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