São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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Exercícios da memória

Henri Cartier-Bresson
Protesto em Paris, fotografado em 1958


Em entrevistas inéditas, Henri Cartier-Bresson fala sobre a sua relação com os amigos e a arte

MICHEL GUERRIN
DO "MONDE"

Em entrevistas inéditas, Henri Cartier-Bresson, morto na última terça, aos 95 anos, fala de seu trabalho, de seus amigos, de suas relações com a imprensa, de sua agência e de seu gosto pela arte.
Tivemos vários encontros com Henri Cartier-Bresson, a partir de 1990, em seu apartamento iluminado na Rue de Rivoli. Às vezes para uma entrevista ao "Monde", várias vezes pelo simples prazer de conversar com ele. Algumas das entrevistas foram gravadas. De vez em quando Cartier-Bresson recusava o gravador. "Faz bem trabalhar a memória", dizia.

Os jornais e a época
Dizem que os jornais dos anos 50 eram melhores do que os de hoje. Era a saúde do mundo que estava melhor. Hoje nos pedem que vivamos em segunda mão. Alguns dias atrás eu estava no TGV (o trem de alta velocidade). À minha frente, uma mulher lia uma revista de psicologia. Eu disse a ela que, no meu tempo, as pessoas se falavam nos trens e aprendiam psicologia dessa maneira. Ela riu. Concordou comigo. Ter tempo, tomar tempo para fazer as coisas, foi o único luxo de minha vida. As pessoas apressadas são infelizes. Cioran já disse que a morte nunca exigiu que se marcasse uma hora para ela. O que me alimenta é a imprensa escrita, o ponto de vista dos redatores, os comentários. Leio os jornais diários para ficar em contato com a vida do dia-a-dia. Não leio o tipo de revista em que as mulheres são inatingíveis.

Um ganha-pão
Para mim, a imprensa foi apenas um ponto de apoio. Ela me permitiu viver, foi um ganha-pão. Convivi muito bem com a imprensa. Durante minhas reportagens, antes e depois da guerra, eu fotografava todos os dias, mas não tinha nem tempo nem vontade de me interessar pela publicação das fotos. A agência Alliance Photo, antes da guerra, e a Magnum, no pós-guerra, se encarregavam de vender as imagens. Eu passava três quartos do tempo viajando, não via as fotos publicadas. Meu tesouro de guerra não é a imprensa, é a exposição e o livro, o lado visual.

O "Ce Soir", de Aragon
Nos anos 30 trabalhei durante alguns meses para o diário comunista "Ce Soir", de [Louis] Aragon. Foi lá que conheci Robert Capa e Chim Seymour, com os quais fundei a agência Magnum, depois da guerra. Éramos os fotógrafos credenciados do jornal. Aragon nos deixava totalmente à vontade. Vivíamos à margem da sociedade; o dinheiro de um era o dinheiro do outro. Ao nosso lado havia outros fotógrafos, colegas sindicalizados. O "Ce Soir" me enviou a Londres, juntamente com Paul Nizan, para cobrir a coroação do rei Edward 8º. Foi quando fiz aquela foto de pessoas dormindo num parque.
Em 1934, um amigo organizou em sua casa uma reunião contra o coronel de La Roque. Havia muitos intelectuais, Guehenno, talvez Malraux, todos os surrealistas, menos Aragon e Sadoul, que tinham viajado a Kharkov, na União Soviética, para um congresso. Sabemos o que foi feito deles -o movimento surrealista foi denunciado nesse congresso, que marcou a ruptura entre os comunistas, que seguiram Aragon, e os surrealistas, que seguiram Breton. Eu, de minha parte, me sentia próximo de um ideal comunista, um pouco como os primeiros cristãos. Depois mudei um pouco de idéia com a leitura do livro de Gide sobre a URSS.
Mas não sou um homem de partido, sou um revoltado. Assim, não cheguei a conhecer verdadeiramente Aragon, que se desentendeu com os surrealistas. Quanto a Breton, a última vez em que nos vimos não foi bem. Jantamos juntos, e ele me disse: "Você que gosta de Cézanne", esboçando um movimento como se fosse me dar um soco no queixo. Respondi: "Sim, e daí?". Breton respondeu: "Esse sr. nunca teve a coragem de dizer à sua mulher que, para pintar banhistas, era preciso contar com corpos femininos de verdade". Breton tinha um ponto de vista tão moral... Depois disso ele falou mal de Alberto Giacometti. Foi o fim. Alberto era meu mestre em termos de pensamento.

Manipulação das revistas
Para mim, as imagens devem ser mudas. Elas precisam falar ao coração e aos olhos, não devem ser ligadas ao texto. Podemos fazer uma imagem na imprensa dizer qualquer coisa. Mostrei minha foto do papa à minha mãe, que era uma mulher religiosa que lia os pré-socráticos, Demócrito, Heráclito, Espinoza. Ela disse que era minha foto mais religiosa. Um amigo me declarou, pelo contrário, que era a mais anti-religiosa possível. Então... A imprensa ilustrada aproveita essa ambiguidade das imagens para manipular. Com freqüência, ela faz mais comunicação do que jornalismo.

A agência Magnum
Quando criamos a Magnum, eu e Chim Seymour nos perguntávamos como faríamos para que Capa pudesse sobreviver, ele que vivia em grande estilo, oferecendo refeições suntuosas. Éramos ingênuos. Na verdade, foi ele quem nos fez sobreviver. Chim imaginou os estatutos e a organização da Magnum, mas era Capa quem negociava os contratos com os jornais. Ele o fazia muito bem -e como! Eu ficava espantado com seu dom da palavra. Capa não era comerciante, mas jogador de pôquer. Se Chim e eu tivéssemos ido aos jornais para falar de dinheiro, teríamos sido lamentáveis.
É preciso lembrar que o mundo era outro, não havia televisão. Como imaginar, quando me vi na China no momento da revolução, que não havia outros fotógrafos comigo? Quando parti para a URSS, em 1954, não foi para a "Paris Match", mas para a Magnum. Foi apenas mais tarde que a reportagem saiu na revista.
Devo muitíssimo à Magnum. Especialmente pelos arquivos, que constituem a riqueza da agência. Sabíamos que nossos arquivos eram nossa "segurança". O problema são os vínculos entre a imprensa e o dinheiro, especialmente com a publicidade. Espero que o lado aventureiro da Magnum continue presente sempre. Numa empresa pequena, é preciso permanecer aventureiro.

Um trabalho político
As exposições permitem que se dê forma ao conjunto de imagens. É a força do documentário, poder conferir forma a um tema. Mas saber o que esse conjunto prova, não sei nada. Dou meu testemunho de que estive lá e que vi aquilo. Sou herdeiro de uma tradição, a de Walker Evans. Tomemos o caso da globalização, que me apavora. O problema é que a Leica não pode dar conta dela. Acho que não se pode fazer um trabalho diretamente político com a máquina fotográfica. Não posso provar com minha máquina, posso apenas testemunhar a partir da vida de todos os dias. Aliás, existe um buraco na Magnum, que é a guerra da Argélia.
Nunca pus meu trabalho a serviço de uma idéia. Tenho horror às imagens que defendem uma tese. É o subconsciente que joga, e é preciso respeitá-lo. Querer "pensar" alguma coisa -não, não e não! As pessoas estão fartas de idéias. Como se houvesse um prêmio por ser inteligente.
Não tenho nada a provar -eu vi isso, eu vi aquilo. Confio no homem, mas acho a sociedade lamentável. Por outro lado, não há dúvida de que vejo aquilo que outros não enxergam. Corremos, suamos e fazemos fotos. Existem os fotógrafos como eu, que sofreram duas doenças profissionais, nos joelhos e na coluna vertebral. E existem os fotógrafos conceituais, que pensam. Essa noção de artista é definida pela burguesia do século 19 -Haydn tinha que mostrar que tinha as mãos limpas como as das pessoas da casa.
Dizem que sou surrealista. Sem dúvida, mas poucas pessoas compreendem que sou o surrealista da realidade. As pessoas acham que, para ser surrealista, é preciso obrigatoriamente colocar uma lata de lixo na cabeça. Meu sogro me disse um dia: "Henri, você não tem bom senso!". O bom senso não foi uma qualidade primordial para os surrealistas. O surrealismo não é o chapéu engraçado, é mais do que isso.

Música, arte, cinema
Ouço música o tempo todo enquanto trabalho -jazz, música clássica. Na escola, eu tocava flauta para não precisar jogar futebol. Um dia meu professor, que era do Conservatório, me disse que eu não tinha ouvido. Foi ele quem me incentivou a fazer outra coisa: desenho, pintura. Durante toda a minha vida, sempre que eu ia fotografar em um país, minha recompensa era ir aos museus. Foi ali que compreendi que fazer um retrato significa representar a si mesmo. Nos retratos feitos por Avedon, é Avedon quem eu vejo.
Mas, você sabe, a fama... Me irritava com alguém que me perguntava se tal pintor era conhecido. Respondi que ele provavelmente era conhecido por seu zelador e pelo serviço de informações. No cinema, que aprendi em 1935, com Paul Strand, há um discurso a conduzir, pois você nunca vê a imagem: é preciso ordenar as frases, conhecer a gramática. É um discurso com imagem. Enquanto isso, na fotografia, há o lado aventureiro e existe sempre a preocupação da geometria.

"Jesuíta protestante"
Falar de mim não interessa a ninguém. O que vale é a atitude, aliada a uma certa cultura. Eu leio muito, é uma maneira de viver. Mas sou reservado. Quando se fala de mulheres, eu enrubesço. Jean Lacouture me dedicou seu livro sobre os jesuítas: "A um jesuíta protestante".
Medo da morte? Da morte, não, mas do sofrimento, sim, penso nisso a toda hora. É normal. Nos EUA me sinto pouco à vontade, porque não se fala da morte. Prefiro o México ou a Espanha, onde existe uma continuidade natural entre a vida e a morte. Durante uma exposição da Magnum em Londres, respondi a uma pessoa que não me reconheceu e que me fez uma pergunta sobre HCB. Eu disse: "Ele morreu faz tempo e era um safado. Pergunte aos fotógrafos -eles lhe dirão por que".
Tenho horror da segregação entre jovens e velhos. Perguntei à loja da prefeitura até quando era válido um cano que eu tinha acabado de comprar. "Até 1995." Respondi que tenho 82 anos e que o cano ainda vai durar muito tempo. Um negro alto me olhou fixamente: "82 anos!". Eu o olhei e lhe disse que, quando tinha 21 anos, quase morri em seu país por causa de uma febre. Como ele ficou surpreso, acrescentei: "Você deve ser da Costa do Marfim". Ele respondeu: "Sim. Venha me contar a história num café. Para nós, os velhos são a memória". Eu lhe falei da África que conheci, falei de Céline, palavra por palavra. Espero comunicar uma alegria e uma esperança de viver. Pois, se sou ladrão -e eu teria gostado de ser Arsène Lupin, mas não sou tão talentoso assim-, sou um ladrão que doa.


Tradução de Clara Allain


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