São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2004

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As meninas

Caco Galhardo transporta ao livro suas musas fictícias; cartuns são "ilustrados" por textos de Marcelo Mirisola

ALEXANDRE MATIAS
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Quando em Porto Alegre, semana passada, velho compadre lançou empírica teoria, em pleno templo maurício da noite gaúcha: em lugar que só tem mulher de cabelo comprido, pode reparar, o som é ruim. Tal conclusão pode parecer crua e generalista (talvez seja), mas é apenas um dos inúmeros reflexos da padronização feminina que estes tempos de beleza comprada achatam na fórmula salto-saia-corrente-na-cintura-top-cabelão.
Por isso, celebre-se a publicação de "O Banquete", parceria inusitada entre o cartunista Caco Galhardo, autor da tira "Os Pescoçudos", que é publicada na Folha, e o escritor Marcelo Mirisola, aclamado por livros como "O Herói Devolvido" e "O Azul do Filho Morto".
Composto como uma coletânea das "gostosas" (como o autor prefere referir-se, sem eufemismos melectrossexuais) que Galhardo publica em seu site, o livro conta com pequenos históricos das musas fictícias, descritos por Mirisola numa colcha de retalhos da baixa literatura das bancas de jornal, misto da idealização distante de folhetins do tipo "Sabrina" e a tônica de sonho sujo dos fóruns de cartas de revistas masculinas.
Nada do ataque dos (sili)clones da nova boazuda da novela das oito, aqui se mira em mulheres de verdade.
"Curto desenhar mulheres desde os 15 anos, e comecei a desenhar algumas pin ups nas tirinhas da Folha, quando não pintava nenhuma idéia que prestasse", explica Galhardo. "Quando criei o meu site (www.uol.com.br/cacogalhardo/), resolvi que ali era o lugar certo para desenhar as mulheres, então botei o link "Gostosas do Mês", onde publico regularmente três minas por semana."
O cartunista explica a transição do site para o livro: "Quando tive a idéia do livro, foi o único nome que me veio à cabeça. Um amigo já tinha me contado que o Mirisola curtia meus quadrinhos, então parecia que as coisas rumavam para o mesmo caminho. A [editora] Isabella Marcatti, que conhecia os dois, fez a ponte e marcou um encontro. Só aí o conheci pessoalmente. De vez em quando a gente marca de comer pizza de calabresa e tomar vinho no Bexiga".
Mirisola comenta a idealização das personagens, anônimas o suficiente para receberem nomes genéricos: "Sem idealizar não tem graça. O ponto de encontro é a quebrada de cara. Tanto das minas do Caco como do narrador que inventei. No texto -às vezes- levo vantagem".
No "Banquete", nada dos seinfeldismos dos cartuns práticos de Galhardo ou a purulência da realidade rodrigueana de Mirisola. Assistimos a um desfile de meninas casuais com cara de descaso, gatas de ponto de ônibus e libidos secretamente reveladas por garotas que, do jeito que estão, ultrapassam rótulos como cool ou brega. Há um erotismo grosseiro em cada texto, em cada olhar e não-olhar, daqueles que funcionam como elogio quando ditos no contexto certo. "O Banquete" funciona como o calendário de uma borracharia puramente sensorial, onde carros, graxa, mecânicos e fluidos de freio desaparecem à simples visão daquele pôster de pornografia sincera, aquela rudeza feminina que ornava a revista "Sexy" antes de sua recente reformulação editorial.

"Intimidade"
Mas as gostosas de Galhardo não são apenas reedições de musas do estreito imaginário da publicidade. Refletindo o proverbial molho da vida que associamos à variedade, nos encontramos como qualquer ser humano do sexo masculino andando em uma calçada cheia de gente pescando, no meio da turba, divas disfarçadas pela pressa, musas atrás de balcões e amores fugazes nas janelas dos carros. "O Banquete" ("Platão não encontraria título melhor", ri Marcelo) não despe apenas as roupas dos alvos desenhados, mas seus medos, preconceitos, inseguranças e arrogâncias.
"A palavra "intimidade" é a mais obscena do léxico, repugnante no plural, "nossas intimidades", e inverossímil em qualquer situação, seja morfológica, atmosférica ou erótica", Mirisola descreve "Dina", que chama de "meu Abaporu". "Será que já não bastava nosso amor?", conclui, sem concluir.
Perguntado sobre parcerias com outros escritores, Galhardo responde que colaboraria "com qualquer bom escritor, mas tem que pintar algum projeto que dê a liga", como foi o caso do "Banquete". "Uma das coisas legais desse livro é que a gente inverteu o processo. Geralmente o desenhista, ou ilustrador, é que ilustra o texto do escritor, mas nesse caso foi o escritor que "ilustrou" os desenhos com seu texto."
Galhardo, ao responder sobre algum autor que gostaria de trabalhar, dispara na lata: "Paulo Coelho". Mirisola arrisca um possível parceiro: "Talvez o Laerte".


O BANQUETE. Autores: Caco Galhardo (ilustração) e Marcelo Mirisola (texto). Editora: Barracuda. Quanto:R$ 29 (80 págs.).


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