São Paulo, sexta-feira, 08 de agosto de 2008

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crítica

Mojica volta com sangue e imaginação

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Há mais ou menos 40 anos José Mojica Marins não filmava (se não contarmos aqui uns pornôs para sobreviver e a reutilização de cenas antigas). Talvez um dia seja possível apontar os responsáveis pelo crime de lesa-arte que consiste em deixar na geladeira um talento dessa extensão, enquanto somos castigados com filmes nacionais aguados. Fazia também quase isso, desde "Delírios de um Anormal", que Zé do Caixão estava fora de circulação. "Delírios" foi uma tentativa de fuga, desde que a censura o podara de uma vez, na entrada dos anos 70. E, quando começa "A Encarnação do Demônio", fazia 40 anos que Zé do Caixão estava recolhido a uma penitenciária. Mesmo preso, diz-se em determinado momento, matou 29 pessoas. Com toda essa ficha, ele consegue sair da cadeia e, de início, toma contato com um mundo de violência inesperada: quase morre atropelado, é agredido verbalmente, é achacado num bar, cruza com meninos que se drogam. Tudo isso pode ser surpreendente, mas não basta para desviar o velho maldito de seus propósitos: encontrar a mulher capaz de gerar o filho perfeito com que pretende eternizar seu sangue e desafiar os homens fracos, que acreditam nas coisas de Deus e da fé. Sem colocar em questão o mérito de cada proposta, o fato é que Zé as desenvolve muito bem, isto é: seu retorno se dá com mais sanguinolência e ainda mais imaginação. A beleza plástica do filme (a fotografia de José Roberto Eliezer não trai o encanto popular dos primeiros Zé do Caixão) se impõe seqüência após seqüência. E cenas como a transa com a menina coberta de sangue mereciam estar em qualquer antologia do gênero. Zé do Caixão não esquenta, em todo caso, com esses detalhes: vai tecendo seu mundo de horrores e se firmando de uma vez por todas como um dos maiores personagens do cinema brasileiro. Ao sair da sessão, um crítico indaga a outro: "Mas este é um B.O.?". Bem, ele custou R$ 1,8 milhão (mais R$ 500 mil para o lançamento). É um baixo orçamento (embora B.O. possa bem significar, no caso, boletim de ocorrência, tais as carnificinas que o velho maldito apronta). O certo é que entre seus crimes não está o de desperdiçar dinheiro: Mojica chega a essa obra-prima com economia de recursos, belas atuações (Jece Valadão e Adriano Stuart brilham como policiais que podem ser muito bem estudados como exemplo do "estado policial em que vivemos"), Helena Ignez, efeitos e maquiagem modestos e eficientes, e um roteiro provocativo e cheio de imaginação. Tudo isso parece existir para demonstrar que, mais do que dinheiro, o cinema brasileiro e o público precisam é começar a reconhecer onde estão seus talentos.

ENCARNAÇÃO DO DEMÔNIO
Produção: Brasil, 2008
Direção: José Mojica Marins
Com: José Mojica Marins, Jece Valadão, Adriano Stuart
Onde: estréia hoje nos cines Bristol, Villa-Lobos e circuito
Classificação indicativa: não recomendado para menores de 16 anos
Avaliação: ótimo



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