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Crítica/DVD/Série
"Capitu" traduz para TV modo de narrar de Machado de Assis
Minissérie global dirigida por Luiz Fernando Carvalho sai com extras em DVD
GABRIEL VILLELA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Luiz Fernando Carvalho
disse que procurou um
modo "inconfiável" de
narrar ao fazer sua "Capitu", o
que, segundo ele, é como Machado de Assis escreve.
Esse jeito traz à tona inúmeras questões além da maneira
de narrar: a simultaneidade de
tempo e espaço, a diferença entre verdade e mentira, a estética como formação educacional.
Vou falar mais em como o diretor consegue traduzir na tela o
que o autor fez em romance.
Essa desconfiança no caráter
dos narradores é uma ferramenta irônica com que Machado opera em seus livros. Carvalho faz o espectador desconfiar
de Bentinho, o que é um mérito, pois toda a trama decorre
sob o ponto de vista deste personagem. Não temos outra opinião sobre os fatos, só a dele.
Esse talvez seja um dos segredos de Machado: a verdade
nunca é revelada, porque ela é
relativa, está sempre sujeita a
um ponto de vista ou a alguns.
A verdade talvez esteja entre as
coisas, não no seu meio, mas
nos interstícios, nos espaços
vazios, que ficam entre as palavras que dizemos ou escrevemos, nas frestas entre as cortinas e no verso/avesso dos espelhos, que nunca conseguem refletir tal e como uma coisa é.
Criar histórias dentro de
uma história, criar ficção a partir da realidade e desviar a nossa atenção dela para outras
nuances possivelmente é um
caminho que nos leve a compreender melhor as contradições da condição tragicômica
do ser humano de que fala Machado: da ópera burlesca, barroca e mal acabada que é a vida.
O diálogo com o tempo é outra característica de Machado.
Por sua vez, o diretor, hábil manipulador de lentes, marionetes, sentimentos e espelhos,
consegue manejar o tempo e o
espaço de maneira surpreendente e comovente na tela.
O anacronismo que é mostrado colocando Dom Casmurro e o jovem poeta no trem para
a Central no começo da série
nos tempos de hoje, com Jimi
Hendrix ao fundo, é menos para situar o espectador sobre a linha cronológica do tempo e
mais para colocar uma lupa na
possibilidade de que talvez nós
todos tenhamos todos os tempos dentro de cada um de nós.
Carvalho mistura as épocas,
funde "as gentes", edita espaços, como Machado fazia, com
suas digressões irônicas, seus
flashbacks, revelando a cabeça
atormentada de Dom Casmurro. Tudo passa pela mente de
Bentinho, que talvez mude algumas peças do jogo para seu e
nosso deleite e desespero.
Todo esse caminho talvez
não fizesse sentido se não repousasse sobre um compromisso moral do diretor. Wittgenstein dizia, grosso modo,
que ética e estética são iguais,
porque procuram a mesma coisa: a virtude. E a virtude pode
vir pelo que é belo na estética.
Carvalho faz obra de arte na
tela, convoca o brio do espectador para que ele não aceite nada mastigado, mas que mastigue com Casmurro (e com eles,
Machado e Carvalho), que o espectador seja um ruminante
com quatro estômagos para
que ele seja partícipe da criação
da fábula e da criação de sua
própria vida como cidadão.
GABRIEL VILLELA é diretor de teatro
CAPITU
Distribuidora: Som Livre/Globo Marcas; R$ 64,90, em média
Classificação: livre
Avaliação: ótimo
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