São Paulo, sábado, 08 de agosto de 2009

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Crítica/DVD/Série

"Capitu" traduz para TV modo de narrar de Machado de Assis

Minissérie global dirigida por Luiz Fernando Carvalho sai com extras em DVD

GABRIEL VILLELA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Luiz Fernando Carvalho disse que procurou um modo "inconfiável" de narrar ao fazer sua "Capitu", o que, segundo ele, é como Machado de Assis escreve. Esse jeito traz à tona inúmeras questões além da maneira de narrar: a simultaneidade de tempo e espaço, a diferença entre verdade e mentira, a estética como formação educacional.
Vou falar mais em como o diretor consegue traduzir na tela o que o autor fez em romance.
Essa desconfiança no caráter dos narradores é uma ferramenta irônica com que Machado opera em seus livros. Carvalho faz o espectador desconfiar de Bentinho, o que é um mérito, pois toda a trama decorre sob o ponto de vista deste personagem. Não temos outra opinião sobre os fatos, só a dele.
Esse talvez seja um dos segredos de Machado: a verdade nunca é revelada, porque ela é relativa, está sempre sujeita a um ponto de vista ou a alguns.
A verdade talvez esteja entre as coisas, não no seu meio, mas nos interstícios, nos espaços vazios, que ficam entre as palavras que dizemos ou escrevemos, nas frestas entre as cortinas e no verso/avesso dos espelhos, que nunca conseguem refletir tal e como uma coisa é.
Criar histórias dentro de uma história, criar ficção a partir da realidade e desviar a nossa atenção dela para outras nuances possivelmente é um caminho que nos leve a compreender melhor as contradições da condição tragicômica do ser humano de que fala Machado: da ópera burlesca, barroca e mal acabada que é a vida.
O diálogo com o tempo é outra característica de Machado.
Por sua vez, o diretor, hábil manipulador de lentes, marionetes, sentimentos e espelhos, consegue manejar o tempo e o espaço de maneira surpreendente e comovente na tela.
O anacronismo que é mostrado colocando Dom Casmurro e o jovem poeta no trem para a Central no começo da série nos tempos de hoje, com Jimi Hendrix ao fundo, é menos para situar o espectador sobre a linha cronológica do tempo e mais para colocar uma lupa na possibilidade de que talvez nós todos tenhamos todos os tempos dentro de cada um de nós.
Carvalho mistura as épocas, funde "as gentes", edita espaços, como Machado fazia, com suas digressões irônicas, seus flashbacks, revelando a cabeça atormentada de Dom Casmurro. Tudo passa pela mente de Bentinho, que talvez mude algumas peças do jogo para seu e nosso deleite e desespero.
Todo esse caminho talvez não fizesse sentido se não repousasse sobre um compromisso moral do diretor. Wittgenstein dizia, grosso modo, que ética e estética são iguais, porque procuram a mesma coisa: a virtude. E a virtude pode vir pelo que é belo na estética.
Carvalho faz obra de arte na tela, convoca o brio do espectador para que ele não aceite nada mastigado, mas que mastigue com Casmurro (e com eles, Machado e Carvalho), que o espectador seja um ruminante com quatro estômagos para que ele seja partícipe da criação da fábula e da criação de sua própria vida como cidadão.
GABRIEL VILLELA é diretor de teatro


CAPITU
Distribuidora: Som Livre/Globo Marcas; R$ 64,90, em média
Classificação: livre
Avaliação: ótimo




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