São Paulo, sábado, 8 de agosto de 1998

Texto Anterior | Índice

LIVRO - LANÇAMENTOS
Xuxa infantiliza a política, diz Vasconcellos

MARIO VITOR SANTOS
da Reportagem Local

De Petrópolis chega a nova infâmia do anticristo da era FHC. Está sendo lançado "O Cabaré das Crianças", livro do sociólogo Gilberto Vasconcellos, morador da cidade, sobre as relações entre o fenômeno Xuxa e o Brasil de hoje.
Professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora e articulista da Folha, Gilberto Vasconcellos desdobra agora a tese -já anunciada em seu livro anterior- de que a criação da TV Globo em 1965 representou um corte catastrófico no desenvolvimento do país "ágrafo", projetado diretamente do analfabetismo para a era digital.
Xuxa é o vetor "videofinanceiro" daquilo que o autor identifica como uma adultização precoce das crianças e de uma infantilização dos adultos e da política.
Vasconcellos produz um texto delirante, com o recurso a referências cruzadas que unem idéias e autores incomuns para extrair conclusões únicas. Sua intuição descobre energias remanescentes em áreas tão exauridas como o marxismo, o nacionalismo, a psicanálise e a pedagogia.
Com a mesma atitude blasfema que seu livro anterior, "O Príncipe da Moeda" (1997), tinha em relação a FHC, a USP e a sociologia paulista, este "Cabaré" incursiona pelas conexões entre a televisão e a menstruação prematura das crianças, o priapismo dos marmanjos e a destruição da escola pública.
Vasconcellos fala como escreve, em volume alto. Usa o corpo todo no diálogo, contraindo e distendendo as sobrancelhas sobre o nariz, como os braços de um regente envolvido pela música.
Sua meta, como se vê na entrevista a seguir, é "manter aceso o horror radical contra a máquina de fazer doidos e boçais".

Folha - Por que você resolveu denominar um livro sobre televisão de "O Cabaré das Crianças"?
Gilberto Vasconcellos -
O título é um paradoxo. O cabaré é um exercício adulto. A junção de cabaré com criança é uma explosão. Na idade infantil não existe cabaré, que implica a introdução do dinheiro. Não existe cabaré sem valor de troca. A criança é uma representação do mundo sem a presença do dinheiro. Ela é pré-dinheiro, que não existe como representação infantil, como desejo. Esse título é uma violência, para designar o que é o Brasil hoje.
Folha - Você aponta o advento da televisão, com a força que ela veio a ter, como um corte no desenvolvimento histórico-cultural do país. Por outro lado, parece também querer dizer que algumas dessas tendências já estavam presentes na história anterior do país.
Vasconcellos -
A matéria-prima do meu livro é a televisão. O cabaré significa uma ruptura, que é a substituição da escola pela televisão. O cabaré virou escola das crianças. Isso significa que a criança entra num universo digital, videoesfera, da televisão, sem o advento da letra. Isso é uma violência. Entrar na videoesfera com a letra é uma coisa. Sem a letra é uma outra. O livro é sobre esse corte histórico que nasce em 1964. A televisão é o subproduto de um golpe político-militar. Não quer dizer que, se não houvesse o golpe de 64, não haveria a televisão. Haveria de qualquer forma. Porém o golpe imprimiu à televisão um domínio absoluto sobre a sociedade brasileira, substituindo a escola, a letra, o alfabeto pelo signo audiovisual. Esse é o ponto de partida do meu livro.
Folha - Seu livro dá muito relevo a essa influência no plano das relações familiares, terreno complexo, em que o primado da televisão veio agravar uma confusão em relação aos papéis tradicionais. Mas em que a família e identidade cultural se superpõem?
Vasconcellos -
A televisão é o substituto do fogo. É um simulacro do Heráclito, no sentido pré-socrático, porque Heráclito era o fogo. A televisão aglutinou a família, substituindo o fogo que antes reunia a família. Isso levou a uma mutação antropológica da família brasileira. O pai, a mãe, o filho e a filha são completamente diferentes depois do advento da televisão. Isso tem uma data, 1965, com a fundação da Rede Globo.
Folha - Você se refere especificamente a Xuxa como ícone a ser exorcizado. Não é dar importância exagerada a um personagem apenas banal, ainda que sustentado pelo erotismo?
Vasconcellos -
Não é o erotismo, porque a Xuxa não é erótica. Ela entra como um ícone, porque depois dela virão outras xuxas. É o ponto de partida desse modelo que faz a genitalização precoce das crianças, que estreita o domínio da infância. Esta virou um privilégio dos países ricos. País pobre não tem que ter infância, a criança tem que trabalhar cedo, entrar na esfera genital cedo. Nós não temos o luxo da poliformia das zonas erógenas, como dizia Freud. Nós perdemos esse direito, temos que nascer adultos, com holerite, o superego aguçado, um cálculo na cabeça. O privilégio da infância, que é o privilégio da vida, esse não nos pertence. E a Xuxa é uma representação dessa tendência social. O que é a colônia hoje? Ela tem que exportar minério, a bioenergia e o sexo. É uma casa da mãe Joana, em que nós damos aos colonizadores as nossas mulheres, as nossas filhas para serem comidas pelo imperialismo. Em termos marxistas, isso seria uma consequência da divisão internacional do trabalho. O meu livro é uma análise da divisão internacional do trabalho no nível da relação corpórea entre o pai, a mãe e a criança.
Folha - Cito um trecho do livro: "Se porventura um dia a Xuxa for uma mãe de luxo, certamente essa filogênese do Brasil amanhecendo repetirá a ontogênese do Brasil que se partiu no vídeo da gramática colonizadora". Parece que a Xuxa anuncia aí uma nova era.
Vasconcellos -
Há uma cisão entre o seio da mãe e a boca da criança no Brasil colonial, que é a crítica que o Oswald de Andrade, o Gilberto Freyre e o Luís da Câmara Cascudo faziam à colonização portuguesa, sobretudo ao jesuíta que tirou a boca do curumim do seio da mulher indígena. Essa cisão é hoje reatualizada pela Xuxa, daí esse período metafórico. Os críticos deveriam fazer uma exegese desse texto para me explicar por que escrevi isso.
Folha - Fale dessa sua afiliação ao pensamento do sociólogo pernambucano Gilberto Freyre e do etnógrafo potiguar Luís da Câmara Cascudo, personagens evocados para estabelecer uma visão de Brasil alternativa a uma outra, mais paulista, dominante e empossada.
Vasconcellos -
Eu sou paulista. Minha mãe é paulista. Meu pai era baiano. Eu sou paulista do interior. Estudei na USP. Fiz doutorado com 27 anos. Fui discípulo do que há de melhor na cultura paulista. Porém eu não fiquei adstrito a essa cultura. O que eu fiz nesse livro foi juntar minha experiência paulista com o que é renegado pela cultura brasileira, que é o além de São Paulo. O paulista, como recebeu um influxo multinacional, estrangeiro muito grande, perdeu o caráter do Tietê, bandeirante. Então hoje a intelectualidade paulista não se conecta com a multifacetada regionalidade brasileira. Está muito mais vinculada aos pólos internacionais do capitalismo. Isso corresponde a uma fraqueza, a um descenso intelectual que pode ser apontado no fato de que não há nenhuma tese sobre Luís da Câmara Cascudo feita no Centro-Sul do país. O que é um absurdo. Como é que o maior escritor do século 20, o maior pesquisador, o maior gênio, passa desapercebido no pólo mais desenvolvido do país, que é São Paulo? Nós perdemos muito em gozo, em êxtase, em vivência da morte em razão dessa sabotagem feita em relação a ele em São Paulo e no Rio.
Folha - Em seu livro, você parece querer dar ao gozo e ao êxtase uma materialidade, associada inclusive à sua paixão por Getúlio Vargas e Leonel Brizola. Qual é o sentido dessa defesa, quando o país vai optando por um caminho oposto ao dos caudilhos, numa direção mais supostamente modernizante, de integração com as economias desenvolvidas?
Vasconcellos -
O brasileiro tem a rara oportunidade na história do mundo de conciliar o lúdico com a racionalidade. Quando eu me reporto a Getúlio, João Goulart, ao cineasta Glauber Rocha e ao político Leonel Brizola, eu estou me referindo a uma riqueza energética da cultura brasileira, baseada em duas coisas palpáveis e essenciais em qualquer lugar do mundo: o sol e a água. Nós somos um país privilegiado do ponto de vista do encontro do sol com a água. É essa cópula que nos define, e essas figuras históricas que eu acabei de citar foram figuras que estavam procurando com todas as contradições, vicissitudes e impasses a autonomia energética, ou seja, a vida livre nos trópicos. E essa vida livre no trópico é antes de tudo uma operação mental, intelectual. Eu sei que hoje em dia os intelectuais estão broxas, não têm ambição em relação ao país. Estão completamente vinculados ao mero vil metal. Perdem em tesão, em virilidade mental, em fantasia, em criatividade. Nesse livro eu falo, peraí, vamos voltar a uma tradição tesuda da cultura brasileira. Essa tradição foi rompida em 64 e sepultada por esse eunuco da sociologia brasileira que é Fernando Henrique Cardoso e toda a entourage que o cerca. Uma sociologia antierótica, não no mero sentido genital, mas no sentido de que a vida tem que ser plena e ser gozada na Terra. O homem tem que ser feliz, ter o gozo na Terra antes de morrer.
Folha - Qual o valor que a democracia assume para você? Você tem mais compromisso com o Brasil ou com a democracia?
Vasconcellos -
Eu dou mais valor ao compromisso com a felicidade do povo. O leitor desavisado ou inimigo meu de má-fé poderia dizer que sou contra a democracia. Sua pergunta pressupõe isso, que estaria mais propenso a uma felicidade ditatorial do povo do que uma democracia fajuta. Isso não quer dizer que eu seja antidemocrático. Porém, na história do Brasil, de 1930 para cá, a democracia brasileira do capital internacional tem sido um desastre para o povo brasileiro. Ou muda-se a democracia ou o capital internacional.
Folha - Seu livro parece voltado a expor a suposta falência da sociologia e da historiografia sobre a mulher no Brasil. O que a suposta masculinização da cultura brasileira tem a ver com o atraso? Outros países parecem se destacar justamente por sua virilidade.
Vasconcellos -
O meu livro é uma investigação sobre a mulher e a criança. Sobre o que a mulher faz com a criança e vice-versa. É uma reflexão sobre o patriarcalismo brasileiro. A Xuxa não é nem o pai nem a mãe nem a criança, é a mercadoria. A Xuxa é o neutrum. O livro tenta explicar essa falência do homem e da mulher na civilização brasileira.
Folha - Essa abordagem não lhe lembra a uma certa desilusão presente pensamento dos teóricos da Escola de Frankfurt?
Vasconcellos -
Os frankfurtianos não curtiram o amor pleno da mulher. Eu não sou um "kultur kritik". Não estou vinculado a essa crítica pessimista, charmosa da Escola de Frankfurt. Eu acredito no amor da mãe pelo filho e do filho pela mãe a despeito de todas as adversidades. A despeito do pai que chega fedido, não sabe penetrar. O brasileiro não sabe copular. Nossas mães estão sendo copuladas por homens falhos. Mas a mídia coloca o Brasil como o país da fuderola, da gandaia, da tropicália. Essa música popular brasileira que coloca o Brasil como o grande paraíso, que a Xuxa encarna muito bem, isso é mentira.
Folha - Seu livro se refere ao fato de que Xuxa estaria determinando o tom infantilóide das campanhas eleitorais de esquerda, com o Lula-lá etc. Algum candidato tem chance de vencer sem a infantilização de seus programas?
Vasconcellos -
Escrevi sobre a Xuxa porque ela é a via de acesso à totalidade, que, segundo Hegel, é a verdade. Qual é o personagem que, tematizado, vai nos levar à verdade? Marco Maciel? Fernando Henrique? Francisco Weffort? Marilena Chauí? Boris Fausto? Gabriel Cohn? Quem vai te levar ao todo? É a Xuxa. A campanha eleitoral de 1989 foi estruturada com a melopéia da Xuxa, tanto a musiquinha de Lula como a de Brizola foram estruturadas pelo ilariê da Xuxa. Ela concentra tudo.
Folha - Como no livro anterior, este também exibe um roteiro de obsessões, para o qual você convoca pessoas que lhe foram caras. Você como que psicografa obras que, a seu ver, essas pessoas deveriam ter escrito.
Vasconcellos -
Fiz esse livro em homenagem a todos os meus mestres, como Claudio Abramo, que era um homem do êxtase, um dos homens mais libertários que houve, do ponto de vista do gozo, do prazer. Eu, menino, com 27 anos, tive com ele uma relação do êxtase, da inteligência, da elegância. E o Claudio ia adorar meu livro sobre a Xuxa. Poria na capa da Folha.
Folha - Você parece ignorar que há muita gente boa que pensa que o Brasil resolverá tanto os seus problemas quanto menos ele estiver submetido à necessidade de gozo, de uma certa atitude irracionalista, primitiva, folclórica, e mais estiver preocupado em ser eficiente, racional, em resolver seus problemas, em corrigir os erros, em ter uma atitude planejada diante das coisas. É isso o que significa a situação, vamos dizer assim, em torno o Plano Real. É o controle sobre as forças irrefreáveis da espontaneidade, da natureza, da tendência irreversivelmente carnavalizante do brasileiro. A muitos você surge como quem tenta resolver a contradição pelo seu lado mais atrasado.
Vasconcellos -
Você está me pintando como um primitivo, emocional, festeiro. O Brasil é o maior país tropical do planeta. Tem a raiz da vida. Nós temos a energia capaz de unir a racionalidade com o desbunde.

Livro: O Cabaré das Crianças
Autor: Gilberto Felisberto Vasconcellos
Lançamento: Espaço e Tempo
Quanto: R$ 20



Texto Anterior | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.