São Paulo, quarta-feira, 08 de setembro de 2004

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Lynch introduz gênese do pesadelo

DA REDAÇÃO

Num cenário industrial, um homem tem sua cabeça arrancada. Ela sai voando em direção a rua, onde um garotinho a encontra e a vende por uns trocados em uma fábrica. Lá, uma máquina vai transformá-la em uma borracha de lápis.
Seqüência de um filme sem sentido? Se o cineasta em questão for David Lynch, há toda a coerência do mundo nestas cenas de "Eraserhead" (1977), seu primeiro longa-metragem, que é a atração de hoje do Cine Comodoro, ao lado de "O Homem de Palha" (1973), de Robin Hardy.
Sob um certo ângulo, Lynch é um cineasta azarado. Produz numa época em que as coisas precisam ter lógica. Fosse um longa convencional, a sinopse seria: Henry, homem solitário, engravida uma mulher e não consegue aceitar o filho, que nasce deformado. Como trata-se de Lynch, veremos uma criatura-monstro com cara de peixe, minhocas/espermatozóides gigantes, frangos assados que começam a se mexer no prato, uma moça que vive num aquecedor, e por aí segue.
Certa vez, no programa de TV "Independent Focus", Lynch deu a melhor explicação sobre seu universo: "Sabe quando você tem uma idéia e você simplesmente não sabe de onde ela veio? Ter uma idéia é como uma pescaria. Você tem que ficar esperando, porque uma hora ela chega".
Pois o cineasta teve tempo de sobra para pescar seu peixe e fazer esse filme. Mais exatamente cinco anos. Em 1972, Lynch finalizava seus estudos no American Film Institute, em Los Angeles. Com os recursos que recebeu, reuniu uma pequena equipe para realizar seu primeiro longa. Quando o dinheiro minguava, Lynch interrompia as filmagens e buscava fontes alternativas. Chegou a trabalhar como entregador do "Wall Street Journal". O diretor praticamente viveu o filme e morou no estúdio.
Quando finalmente estreou, em 1977, o filme foi um "desastre", nas palavras do diretor. Nas primeiras sessões, o público e crítica detestaram. Não é para menos. Em certo sentido, "Eraserhead" é um filme mudo -portanto não se preocupe com as legendas em francês. Há poucos diálogos, mas muitos barulhos. Sons de indústrias, sussurros e choros criam uma atmosfera de pesadelo.
Expressionismo, escatologia, humor negro e nonsense vão moldando esse filme, cuja referência mais imediata é "O Bebê de Rosemary", de Roman Polanski. "Eraserhead", que em princípio causou apenas repulsa, virou objeto de culto. Graças à simpatia de um distribuidor de Nova York, conseguiu uma sala onde seu filme era exibido numa sessão "maldita", à meia-noite (conexões com o Cine Comodoro, portanto). De boca em boca, virou um pequeno sucesso.
Com ele, Lynch entraria em Hollywood. Um dos fãs era o comediante Mel Brooks, que, após assisti-lo, fez o meio de campo para que Lynch dirigisse "O Homem-Elefante" (1980).
"Eraserhead" já contém elementos que marcariam Lynch. Estão lá a criatura deformada ("Homem-Elefante"), as minhocas ("Duna"), mudança de corpos ("Estrada Perdida") e a narrativa que mistura sonho e realidade ("Cidade dos Sonhos").
Iria também inspirar artistas ligados ao pop (esquisito, claro), como a banda Pixies e as góticas do Miranda Sex Garden (ambos registraram versões para "In Heaven (Everything Is Fine)", música cantada pela "moça do aquecedor"); o quadrinista Daniel Clowes também tem uma personagem parecidíssima com o bebê monstro em "Como uma Luva de Veludo Moldada em Ferro".
O próprio Lynch diria que, cada vez que o assiste, encontra novos significados: "É um filme abstrato, uma espécie de sonho; foi feito de um modo intuitivo e não-intelectual". Significados fechados são apenas detalhes. (BYS)


CINECLUBE COMODORO. Exibição de "O Homem de Palha" e "Eraserhead". Onde: Cinesesc (r. Augusta, 2.075, SP, tel. 0/xx/11/3082-0213). Quando: hoje, às 21h30 (retirar senha às 21h).


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