São Paulo, terça-feira, 08 de outubro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERNANDO BONASSI

Pode ser um assalto

Sexta-feira . Quase dez. Avenida estrangulada. Ônibus, fumaça e gritaria. Faltando coisa de cinco minutos pra fechar o caixa eletrônico, cidadão desliga o carro com marcha engatada, larga por cima da calçada, salta duas jardineiras mortas, se aproxima de cartão magnético em punho... Mas tem que esperar.
Lá dentro um casal se beija. Dá pra ver as línguas se misturando. Cidadão bufa. Espera. Bochechas babadas, o casal pega o dinheiro da gaveta e vem pra saída. A porta solta num apito. Cidadão entra esbarrando. As fluorescentes piscam. Cidadão aperta os botões, conversa com a voz gravada e tira cem reais. Dobra bem, mistura no bolso com lenço, remédio e chaveiro. Na saída um sujeito pára, encarando. Lá de dentro, a voz: "Obrigado, volte sempre". Diante do sujeito, cidadão pensa que é caso de esmola.
- Tô sem trocado.
O cidadão dá um passo na direção do carro abandonado, procurando por papel no vidro. O sujeito torna a se colocar na frente. O cidadão, impaciente:
- Acho que você não deu sorte comigo hoje.
Não tem multa. O cidadão relaxa. O sujeito dá passagem e comenta:
- Meu azar não é de hoje.
Depois segue o cidadão até o carro. Vigiando de cá e de lá, puxa uma Glock debaixo da camisa. Cinza cor-de-chumbo. Pente novo. Um chumbo dentro do outro. O cidadão vê, mas não acredita:
- Desculpa. Eu preciso ir.
Quando o cidadão destranca a porta do seu lado, o sujeito aproveita pra abrir a do passageiro. Senta e suspira. O cidadão, em pé no meio da rua, pensa se devia sair correndo. O carro... Sexta-feira... Melhor não. Entra, senta.
- Carona?
É pras luzes desparelhadas que piscam no rush que o sujeito aponta um dedo. O cidadão, sem saber pra onde:
- Onde?
- Só vá dirigindo.
Olha no colo do sujeito, lá onde descansa a arma. Sente que é preciso esclarecer as coisas:
- É um assalto?
O sujeito aproveita pra esconder o ferro dos pedestres que vazam em torno.
- Pode ser um assalto.
- Como assim "pode ser"?
- Só vá dirigindo.
O cidadão dá a partida. Deixa passar as buzinadas e arranca. Devagar... Como se algo pegajoso pudesse, de repente, derramar do conteúdo:
- Onde nós vamos?
O sujeito fica olhando os vestidos baterem na bunda das mulheres que fazem compras. Muita gente fazendo compra. Compra de sexta-feira à noite é programa, pensa o sujeito. Ele pensa também se já fez compra de sexta à noite... Chega a franzir o cenho de tanto pensar. Não. Nunca. Sexta- feira à noite e compras não combinam com a vida que tem levado. "Compras" não combinam com a vida que tem levado... Só então responde:
- Lugar nenhum, até agora.
O cidadão começa a raciocinar. É mais um formigamento no peito. Parece que vai soltar o volante e juntar as mãos numa prece. Não chega a tanto.
- Escuta, eu tenho família...
O sujeito mexe num ímã do painel: uma menina de uns 12 anos e uma mulher dos seus 40 ficam sorrindo pra quem quiser ver. No meio, um recado em dourado: "Papai, estamos esperando por você". O sujeito:
- Problema seu, devia ter pensado melhor antes.
O cidadão, reagindo:
- Olha, se você pensa que...
Mas não acaba o que quer que seja. O sujeito interrompe:
- Não penso nada. Tenho fome. Difícil pensar quando a gente tem fome...
- O carro, minha carteira... Cheque, cartão, dinheiro... Tem aí uma valise de couro legítimo. Pode ficar com tudo!
O sujeito faz questão de ajeitar uma perna, deixando a ponta da pistola escapar na direção do cidadão:
- Eu sei que posso.
O cidadão, sentindo uma vontade de ficar amigo (rápida):
- Eu não me importo.
O sujeito suspira de novo. Como se o pulmão não coubesse.
- Não precisa mentir.
O carro deriva da direita pra esquerda, depois volta a ficar perto das travessas. Por via das dúvidas:
- Pra direita ou pra esquerda?
O sujeito dá de ombros.
- Quer parar pra comer alguma coisa?
Agora o sujeito nem responde. O cidadão olha pro ímã:
- O que vai acontecer?
Ao que o sujeito, olho na cidade que atravessa pelos vidros, comenta:
- Não sei, ainda não sei. Vamos deixar as coisas acontecerem, só vá dirigindo...


Texto Anterior: Documentário: GNT diminui co-produções locais
Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: "Madame Satã" é premiado na França
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.