São Paulo, domingo, 08 de outubro de 2006

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BIA ABRAMO

Homens, mulheres e carros


Para a propaganda, o carro é um objeto de valor fálico, que confere poder, status e virilidade

VOCÊ , certamente, já deve ter visto a propaganda: uma câmera hiper-realista exibe imagens muito nítidas e bonitas de uma mulher (ou de um homem, numa segunda versão do mesmo "conceito") e de um carro. "Você e seu..." e o locutor enuncia a marca automobolística.
Primeiro, um plano americano mostra rosto e pescoço da mulher; depois, parte do capô de um carro. Detalhes de uma e de outro vão se alternando: olhos são comparados a faróis, o interior do veículo ao do corpo humano e assim vai. No início, as imagens do ser humano e do automóvel sucedem-se em intervalos maiores, que vão diminuindo, e o ritmo vai crescendo, como numa relação sexual, até o paralelo homem-máquina atingir uma espécie de paroxismo orgástico.
E vem a bonança: "Sabe que cada vez vocês estão mais parecidos?". Aparece o logotipo, clássico, em prata sobre preto, e o resto é silêncio.
Estamos, provavelmente, diante de um marco histórico da publicidade a partir daqui, os automóveis estão pau-a-pau, parafuso-a-parafuso com seres humanos.
Homens e mulheres devem passar a procurar suas caras-metades entre carros, entre marcas de carro, entre modelos daquela marca específica, não mais, nunca mais, entre outros homens e mulheres.
Para a propaganda clássica, o carro nunca foi o veículo utilitário, barulhento, poluidor que de fato é, e, sim, um objeto de valor fálico, que confere poder, status, virilidade e sabe-se lá que outros buracos existenciais que se supõe que o carro possa preencher. Agora, abre-se uma nova era, em que de objeto o carro passa a ser sujeito. Uau!
É evidente que não é lá muita surpresa o fato de a propaganda não ter o menor pudor em atribuir significados afetivos, morais, espirituais aos objetos que tem por objetivo vender.
Digamos que, numa sociedade que colocou o mercado em uma posição de deus a ser apaziguado, com sacrifícios rituais em que excluídos, pobres e outros perdedores devem ser oferecidos em holocausto para agradá-lo, essa é uma operação que soa quase que natural.
O que indica estarmos em outro patamar de desfaçatez, digamos assim, é essa imposição de uma intimidade (desejável e necessária) entre homem e máquina, na qual não é o homem quem conduz a máquina, mas a máquina que impõe suas formas e seu ritmo ao homem. E disso extrai-se um novo tipo de gozo, não mais humano.


biabramo.tv@uol.com.br


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