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Análise/livro/"Cartas a Favor da Escravidão"
Esforço letrado de Alencar é chocante
Textos publicados revelam um escritor admirável e ao mesmo tempo execrável, que faz pensar nos novos senhores do Brasil
TALES AB'SÁBER
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quem ler as "Cartas a Favor
da Escravidão", de José de
Alencar, que a editora Hedra
publica após 140 anos de sua
primeira aparição, deve se espantar. De fato, o livro tende
para o inacreditável.
Há muito que circula a percepção em círculos progressistas de que as elites nacionais
poderiam funcionar por princípios pré-modernos em plena
modernidade, diante dos quais
o horizonte real de desenvolvimento social do país não é um
móvel histórico forte.
A vida ideológica estável de
nossa época nos impede de
checarmos as concepções de
mundo do poder e seu controle
do corpo e destino no mundo
do trabalho. Em um tempo em
que todo poder emana do capital, e a crítica da violência no
espaço do trabalho está vedada
por princípio, apesar da virtual
escravidão, a verdade é que a
violência contra o trabalho
continua aí, presente, configurando amplos setores da economia. No entanto, tais novos
senhores do trabalho do outro
estão justificados a priori.
Afinal, imensas empresas,
como as grandes marcas esportivas ocidentais, não exploram
também ao extremo o trabalho,
até mesmo o infantil, no sudoeste asiático, ao mesmo tempo em que terceirizam as responsabilidades, como se nada
tivessem a ver com essa ordem
de iniqüidades, mesmo quando
ganham tudo com ela?
Clareza e astúcia
Em uma certa passagem de
nossa modernidade, José de
Alencar se pôs a defender, com
seu estilo transparente e elegante, a posição do Partido
Conservador pela manutenção
da escravidão no Brasil. A instituição estava abalada, pois fora
abolida no império inglês
(1833), nas colônias francesas
(1848) e nos EUA (1863).
As pressões sobre o Brasil
eram grandes, e d. Pedro 2º sinalizava, mesmo que de modo
muito lento e gradual, para o
horizonte de supressão do trabalho escravo. Então Alencar
escreve essas peças execráveis,
mas, paradoxalmente, admiráveis pela clareza e pela astúcia,
sustentando a necessidade civilizatória da escravidão.
Fundado em um princípio de
violência inconciliável da civilização com a natureza e com o
outro humano -o bárbaro-,
que seria civilizado pela força
avançada que o poria como escravo, mas força que também o
tornava um virtual sujeito para
ele próprio, Alencar se utiliza
de todos os argumentos imagináveis em seu tempo para justificar o modernamente injustificável, do risco de crise social
à necessidade econômica fatalista e até mesmo um desenho
de amálgama de raças pela miscigenação e pela cultura, que
faria da escravidão a mãe da
cultura nacional.
Hoje, o esforço letrado e frio
do escritor é chocante e nos parece vazado de desfaçatez. Algo
parece ter mudado no valor dos
fatos e da história.
Mas o que podemos dizer dos
neo-senhores, que mantêm
condições de terror e ignomínia no mundo do trabalho? Se
eles fossem obrigados a falar,
como recentemente os neocons americanos o fizeram para justificar a ilegítima invasão
no Iraque, seu sistema de razões e sofismas soaria semelhante ao do elegante e culto
senhor de escravo e romancista
brasileiro, como toda ordem de
razão que emana da pura força.
De modo algum é acaso que
este tenha sido o único trabalho publicado do autor no século 19 ausente das obras completas de 1959. Tal voz conservadora é de fato mais poderosa
quando silenciosa, quando não
mais necessita se justificar. Por
isso o livro de Alencar é importante. Ele dá voz e configuração
ao que silencia, pois não necessita justificativa, e pode apenas
agir, tão sistematicamente no
Brasil.
TALES AB'SÁBER é psicanalista, membro do
Instituto Sedes Sapientiae e autor de "O Sonhar
Restaurado" (ed. 34)
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