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CRÍTICA
Estréia desmonta mito
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Dentre as várias qualidades
de "Madame Satã", primeiro
longa de Karim Aïnouz, prêmio
de direção no Festival de Biarritz
(França), está o fato de certificar
como morta certa mitologia do
malandro na crítica social e no
imaginário brasileiros.
A narrativa evoca a mitologia da
Lapa, celebrado bairro da malandragem carioca, na idade de ouro
dos anos 30, a partir de um de
seus personagens lendários: o
bandido João Francisco dos Santos (1900-76), o Madame Satã.
Mas a figura de Madame Satã
surge investida no filme mais do
peso político da marginalidade
social do que do charme e da rebeldia atribuídos comumentemente ao malandro. Antes de ser
"malandro", o Satã de Aïnouz é
quatro vezes marginal: é pobre, é
negro, é analfabeto e é bicha.
De um modo ou de outro, o malandro fixou-se -sobretudo a
partir do modernismo- como
arquétipo de contestação social
no Brasil. Num país pré-capitalista e fortemente agrário, era a figura mais próxima que se tinha do
revolucionário urbano.
A fetichização do malandro por
grupos artísticos e intelectuais era
um contrapeso à má consciência
que tinham da pobreza dilacerante do país. O malandro representava, além disso, um elo suportável e glamouroso do mundo intelectual pequeno-burguês com as
regiões obscuras e intoleráveis
onde transitava o "povo".
Glauber Rocha tentou lutar
contra essa predominância do
malandro no fabulário esquerdista, criando personagens de incontestável peso trágico. "A Lira do
Delírio" (1978), obra-prima de
Walter Lima Jr., é o canto de cisne
da Lapa e do malandro no cinema
brasileiro. Hoje, restou-nos a
marginalidade crua e cruel.
"Madame Satã" é um filme de
grande força plástica, construído
como um conjunto de excrescências recalcadas que afloram -do
lodo podre dos cortiços até os corpos masculinos (o malandro é mito fortemente heterossexual).
Mas é um erro adotar o filme
como um ajuste da malandragem
na ótica das minorias. A sua Lapa
irrealista, impregnada na imagem
das ambiguidades e fantasias do
personagem, é uma cloaca social,
um cenário asfixiante e violento,
onde Satã é exibido menos em seu
"lirismo" do que como peça de
uma gigantesca tragédia.
Madame Satã
Direção: Karim Aïnouz
Produção: Brasil, 2002
Com: Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo
Quando: a partir de hoje nos cines Belas
Artes, Espaço Unibanco e circuito
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