São Paulo, sexta-feira, 08 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CRÍTICA

Estréia desmonta mito

ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Dentre as várias qualidades de "Madame Satã", primeiro longa de Karim Aïnouz, prêmio de direção no Festival de Biarritz (França), está o fato de certificar como morta certa mitologia do malandro na crítica social e no imaginário brasileiros.
A narrativa evoca a mitologia da Lapa, celebrado bairro da malandragem carioca, na idade de ouro dos anos 30, a partir de um de seus personagens lendários: o bandido João Francisco dos Santos (1900-76), o Madame Satã.
Mas a figura de Madame Satã surge investida no filme mais do peso político da marginalidade social do que do charme e da rebeldia atribuídos comumentemente ao malandro. Antes de ser "malandro", o Satã de Aïnouz é quatro vezes marginal: é pobre, é negro, é analfabeto e é bicha.
De um modo ou de outro, o malandro fixou-se -sobretudo a partir do modernismo- como arquétipo de contestação social no Brasil. Num país pré-capitalista e fortemente agrário, era a figura mais próxima que se tinha do revolucionário urbano.
A fetichização do malandro por grupos artísticos e intelectuais era um contrapeso à má consciência que tinham da pobreza dilacerante do país. O malandro representava, além disso, um elo suportável e glamouroso do mundo intelectual pequeno-burguês com as regiões obscuras e intoleráveis onde transitava o "povo".
Glauber Rocha tentou lutar contra essa predominância do malandro no fabulário esquerdista, criando personagens de incontestável peso trágico. "A Lira do Delírio" (1978), obra-prima de Walter Lima Jr., é o canto de cisne da Lapa e do malandro no cinema brasileiro. Hoje, restou-nos a marginalidade crua e cruel.
"Madame Satã" é um filme de grande força plástica, construído como um conjunto de excrescências recalcadas que afloram -do lodo podre dos cortiços até os corpos masculinos (o malandro é mito fortemente heterossexual).
Mas é um erro adotar o filme como um ajuste da malandragem na ótica das minorias. A sua Lapa irrealista, impregnada na imagem das ambiguidades e fantasias do personagem, é uma cloaca social, um cenário asfixiante e violento, onde Satã é exibido menos em seu "lirismo" do que como peça de uma gigantesca tragédia.

Madame Satã


   
Direção: Karim Aïnouz
Produção: Brasil, 2002
Com: Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Espaço Unibanco e circuito




Texto Anterior: Diretor enxerga cinema como um ato político
Próximo Texto: Popload: Uma nova revista, mais air guitar, Pavement e o fim do electro
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.