São Paulo, sexta-feira, 08 de novembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A onda vermelha vai terminar na mesa

Para continuar sendo do contra, dotado do excelente espírito de porco que a natureza me deu e que os anos tornaram maior e geral, vou botar um pouquinho de areia na euforia, quase no assanhamento, da esquerda nacional que se considera chegada ao poder.
Nada a ver com Lula, excelente sujeito e na certa bom presidente, conforme todos esperamos. A areia fica por conta da estupidez humana, da qual somos reféns, querendo ou não, tendo ou não consciência do sequestro de nossos sonhos e esperanças.
São dois momentos da história, um bem antigo, de 1935, outro mais recente, com a vitória de um socialista (derrotado diversas vezes na França) que chegou ao poder e nele ficou 14 anos.
Cheguei cedo naquela segunda-feira à Redação de "Manchete" e o Justino Martins me pediu um artigo sobre a vitória de François Mitterrand na véspera. Tratava-se de um homem de esquerda, historicamente de esquerda, que, após algumas tentativas frustradas, chegava finalmente à Presidência da República.
O próprio Justino, amante da França, das coisas francesas e das francesas principalmente, deu-me o título: "Paris, la vie en rouge". Era a onda vermelha de lá, cantada por uns e temida por outros. Desovei as quatro laudas (não havia computador naquela época) imaginando como seria Paris em vermelho, a Paris de Offenbach e de Toulouse-Lautrec, a Paris de Hemingway e de Henri Miller, de Maurice Chevalier e de Mistinguett, terra do bidê, do michê e do minete.
Nem lembro mais as asneiras que escrevi, mas duvidei da onda vermelha que ameaçava as lojas do Faubourg Saint-Honoré, o show de travestis do Madame Arthur e a escuridão cheirando a esperma dos sexshops de Pigalle. Paris resistiria como uma Verdun dos prazeres burgueses -como parece que resistiu.
Outro fato que lembrarei foi o do movimento de 1935, que levou o nome de "Intentona Comunista" -uma classificação pejorativa que os militares deram à rebelião. Em Natal, quando correu a notícia de que os comunistas haviam deposto o governo de Vargas, o povão tomou de assalto os ônibus e bondes da cidade; ninguém pagava passagem, pois os serviços públicos agora eram comuns, de todos, não havia donos e servos, patrões e empregados, eram todos camaradas.
Demorou dois dias para ali chegar a notícia de que a rebelião na Praia Vermelha fora dominada pelas tropas legalistas, que o 3RI fora bombardeado, que os revoltosos, liderados por Agildo Barata, estavam presos. Mas, durante dois dias, em Natal, os oprimidos de sempre, se não chegaram ao Paraíso, andaram de graça nos bondes e ônibus da cidade.
Não sei por que estou lembrando isso. A onda vermelha que tivemos não chegou a ser vermelha, como a outra, a que tinha uma foice e um martelo lembrando os instrumentos de trabalho dos camponeses e operários, as duas ferramentas básicas do proletariado universal. Pelo contrário, tem agora uma baita estrela, que não chega a ser símbolo de trabalho, mas de sonho, de luz, estrela dos reis Magos, da fada de Pinóquio, do sucesso e de uma fábrica de brinquedos.
Para o meu gosto pessoal, seria bom se realmente uma nova classe tomasse o poder de forma pacífica, democrática, sem apelar para a violência da revolução dentro do organismo social. Uma utopia, sem dúvida, mas que permanece entranhada na esperança da humanidade.
Alguns dos nomes em evidência para a formação do novo governo, a começar pelo próprio Lula, por Mercadante, Dirceu, Suplicy, Genoíno e tantos outros, são fatores positivos, combinam com a tal estrela do partido, símbolo de esperança.
Mas eles chegam ao poder preocupados com a governabilidade. Durante a campanha eleitoral, a preocupação do PT foi com a elegibilidade. Empacado nos 30%, 35% do eleitorado, o partido só chegaria ao poder por meio da elegibilidade, conseguida, afinal, pelos acordos que dobraram limpamente o cacife original para mais de 60%.
Vencida a etapa da elegibilidade de forma brilhante até, surge agora o desafio da governabilidade. Em 1994, para chegar ao poder, o PSDB das vestais paulistas teve de se aliar às lideranças nordestinas e oligarcas do PFL, que eram chamadas de "hienas" pelos varões do Olimpo paulistano.
Deu no que deu. Adquiriu a tal governabilidade, dilapidou o patrimônio nacional, sucateou grande parte de nosso parque industrial, criou a maior taxa de desemprego e de concentração de renda da nossa história e deixa um Estado menor e mais fraco para os desafios de um século que começa desfavoravelmente para as nações que pretendem crescer no campo econômico e social.
Na semana passada, um líder classista entregou a uma autoridade do PT, que certamente será governo ou mais do que isso, um memorial pedindo aumento de 83% nos vencimentos da categoria -uma das mais castigadas pelo governo de FHC. Recebendo o memorial, a futura autoridade sugeriu uma conversa, com o tradicional convite: "Vamos sentar à mesa e discutir o assunto". A resposta do líder classista foi rude: "Há oito anos, estamos conversando e acho que chega".


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