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CARLOS HEITOR CONY
A onda vermelha vai terminar na mesa
Para continuar sendo
do contra, dotado do excelente espírito de porco que a natureza me deu e que os anos tornaram maior e geral, vou botar um
pouquinho de areia na euforia,
quase no assanhamento, da esquerda nacional que se considera
chegada ao poder.
Nada a ver com Lula, excelente
sujeito e na certa bom presidente,
conforme todos esperamos. A
areia fica por conta da estupidez
humana, da qual somos reféns,
querendo ou não, tendo ou não
consciência do sequestro de nossos sonhos e esperanças.
São dois momentos da história,
um bem antigo, de 1935, outro
mais recente, com a vitória de um
socialista (derrotado diversas vezes na França) que chegou ao poder e nele ficou 14 anos.
Cheguei cedo naquela segunda-feira à Redação de "Manchete" e
o Justino Martins me pediu um
artigo sobre a vitória de François
Mitterrand na véspera. Tratava-se de um homem de esquerda,
historicamente de esquerda, que,
após algumas tentativas frustradas, chegava finalmente à Presidência da República.
O próprio Justino, amante da
França, das coisas francesas e das
francesas principalmente, deu-me o título: "Paris, la vie en rouge". Era a onda vermelha de lá,
cantada por uns e temida por outros. Desovei as quatro laudas
(não havia computador naquela
época) imaginando como seria
Paris em vermelho, a Paris de Offenbach e de Toulouse-Lautrec, a
Paris de Hemingway e de Henri
Miller, de Maurice Chevalier e de
Mistinguett, terra do bidê, do michê e do minete.
Nem lembro mais as asneiras
que escrevi, mas duvidei da onda
vermelha que ameaçava as lojas
do Faubourg Saint-Honoré, o
show de travestis do Madame Arthur e a escuridão cheirando a esperma dos sexshops de Pigalle.
Paris resistiria como uma Verdun
dos prazeres burgueses -como
parece que resistiu.
Outro fato que lembrarei foi o
do movimento de 1935, que levou
o nome de "Intentona Comunista" -uma classificação pejorativa que os militares deram à rebelião. Em Natal, quando correu a
notícia de que os comunistas haviam deposto o governo de Vargas, o povão tomou de assalto os
ônibus e bondes da cidade; ninguém pagava passagem, pois os
serviços públicos agora eram comuns, de todos, não havia donos
e servos, patrões e empregados,
eram todos camaradas.
Demorou dois dias para ali chegar a notícia de que a rebelião na
Praia Vermelha fora dominada
pelas tropas legalistas, que o 3RI
fora bombardeado, que os revoltosos, liderados por Agildo Barata, estavam presos. Mas, durante
dois dias, em Natal, os oprimidos
de sempre, se não chegaram ao
Paraíso, andaram de graça nos
bondes e ônibus da cidade.
Não sei por que estou lembrando isso. A onda vermelha que tivemos não chegou a ser vermelha,
como a outra, a que tinha uma
foice e um martelo lembrando os
instrumentos de trabalho dos
camponeses e operários, as duas
ferramentas básicas do proletariado universal. Pelo contrário,
tem agora uma baita estrela, que
não chega a ser símbolo de trabalho, mas de sonho, de luz, estrela
dos reis Magos, da fada de Pinóquio, do sucesso e de uma fábrica
de brinquedos.
Para o meu gosto pessoal, seria
bom se realmente uma nova classe tomasse o poder de forma pacífica, democrática, sem apelar para a violência da revolução dentro do organismo social. Uma
utopia, sem dúvida, mas que permanece entranhada na esperança da humanidade.
Alguns dos nomes em evidência
para a formação do novo governo, a começar pelo próprio Lula,
por Mercadante, Dirceu, Suplicy,
Genoíno e tantos outros, são fatores positivos, combinam com a tal
estrela do partido, símbolo de esperança.
Mas eles chegam ao poder preocupados com a governabilidade.
Durante a campanha eleitoral, a
preocupação do PT foi com a elegibilidade. Empacado nos 30%,
35% do eleitorado, o partido só
chegaria ao poder por meio da
elegibilidade, conseguida, afinal,
pelos acordos que dobraram limpamente o cacife original para
mais de 60%.
Vencida a etapa da elegibilidade de forma brilhante até, surge
agora o desafio da governabilidade. Em 1994, para chegar ao poder, o PSDB das vestais paulistas
teve de se aliar às lideranças nordestinas e oligarcas do PFL, que
eram chamadas de "hienas" pelos
varões do Olimpo paulistano.
Deu no que deu. Adquiriu a tal
governabilidade, dilapidou o patrimônio nacional, sucateou
grande parte de nosso parque industrial, criou a maior taxa de
desemprego e de concentração de
renda da nossa história e deixa
um Estado menor e mais fraco
para os desafios de um século que
começa desfavoravelmente para
as nações que pretendem crescer
no campo econômico e social.
Na semana passada, um líder
classista entregou a uma autoridade do PT, que certamente será
governo ou mais do que isso, um
memorial pedindo aumento de
83% nos vencimentos da categoria -uma das mais castigadas
pelo governo de FHC. Recebendo
o memorial, a futura autoridade
sugeriu uma conversa, com o tradicional convite: "Vamos sentar à
mesa e discutir o assunto". A resposta do líder classista foi rude:
"Há oito anos, estamos conversando e acho que chega".
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