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RODAPÉ
Felicidade niilista
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Uma hecatombe no lugar
do pôr-do-sol." A frase
aparece repetidas vezes em "Bangalô" e dá uma idéia do que é esse
novo romance de Marcelo Mirisola: uma viagem ao fim da noite,
um mergulho no "paraíso mentido" da sociedade do espetáculo,
em que a psicopatologia da vida
cotidiana leva ao sufocamento e
em que os desejos se transformam em aberrações.
Assim como em seus livros anteriores (os contos de "Fátima Fez
os Pés para Mostrar na Choperia"
e "O Herói Devolvido" e o romance "O Azul do Filho Morto"), não
há exatamente enredo em "Bangalô", mas uma recapitulação
caótica das fantasias e traumas de
um filho da classe média. E, assim
como em seu romance de estréia,
tampouco há personagens em
sentido convencional, mas apenas um narrador com traços autobiográficos (um escritor que, a
exemplo de Mirisola, vive enfurnado num apartamento em Florianópolis).
Todas as outras personagens
são fantoches que realizam ou
frustram suas fantasias sexuais e
seus fetiches: Cris, a "ungida"
(uma espécie de idealização feminina que sobrevive pela força de
sua ausência), Thaís (que sempre
se apresenta como "arquiteta &
lésbica"), Cleópatra (a prostituta
suicida que ele conhece num disque-puta), as gêmeas Joana e Janaina (protagonistas de uma orgia) e Sol, que sodomiza o narrador com um "pintorário" (uma
espécie de vibrador).
O sexo e as drogas, que fazem
do narrador um onanista compulsivo e delirante, são uma espécie de tábua de salvação. Da mesma forma, seu humor corrosivo
parece ser a saída de emergência
para uma geração que cresceu
bombardeada pelo discurso ufanista, mas que percebeu que o brilho da burguesia ascendente vinha, na verdade, da sucata da indústria cultural (na qual essa burguesia agoniza hoje).
"Queria ver só as recordações
de um Marcel Proust se, no lugar
das madeleines, tivesse que encarar um "Almoço com as Estrelas" e
suas respectivas maioneses e
mandiopans em 1973", escreve
Marcelo Mirisola, dentro de um
estilo que oscila infernalmente
entre o erudito e o kitsch, o sublime e o escracho.
Tudo isso já estava presente em
seus livros anteriores, mas "Bangalô" torna mais explícita e consistente uma poética que boa parte da crítica considerava (a meu
ver equivocadamente) como cacoete estilístico de um escritor às
voltas com suas obsessões.
Em Mirisola, não há possibilidade de um mundo exterior àquilo que é descrito. Em "Bangalô",
ele ridiculariza os "cafetões da
qualidade de vida" e os corretores
dos "paraísos obrigatórios", enfim, todo esse imaginário de pessoas que, quanto mais se refugiam
no universo idílico do consumo e
da mídia, mais são tomadas pelo
pânico.
O narrador -que fica remoendo seu rancores num bangalô tropical, diante de barquinhos de
bossa nova que cruzam o horizonte- talvez encontrasse a salvação nesse "breviário do desfazimento", na literatura como negação e superação de um destino
adverso.
Mas o horror de Mirisola não
poupa nem a si mesmo. "Bangalô" é uma fábula de escárnio e escatologia, mas também um itinerário de autoflagelação. Por isso, o
narrador se deixa penetrar por
Sol, transformando-se em um
"semideus enrabado", humilhado e perplexo.
A própria escrita de Mirisola,
esse fraseado intenso e sincopado,
torna indissociáveis suas epifanias de suas escatologias: "Aqui,
atrás das mortalhas, depois de ter
desbastado a paisagem (eu mesmo o câncer) não tenho mais o
que consumir: perdi as chuvas e o
horário dos barquinhos e, para
adivinhá-los novamente, é preciso obrigar-me com a cegueira e
com as ruínas que inventei. Sei
que fui enganado", escreve ele no
quarto capítulo de "Bangalô", em
que o diálogo com o espectro da
filha abortada se transforma numa sequência que está entre as
páginas mais dolorosas da prosa
brasileira contemporânea.
Mas nem a dor é um ponto de
fuga. No universo de Mirisola, todos caminham euforicamente para o suicídio, apostando que "o
prolongamento de qualquer morticínio é a esperança da paz". Nesse sentido, "Bangalô" é um exemplo raro de felicidade niilista.
Bangalô
Autor: Marcelo Mirisola
Editora: 34
Quanto: R$ 19 (128 págs.)
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