UOL


São Paulo, sábado, 08 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Felicidade niilista

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Uma hecatombe no lugar do pôr-do-sol." A frase aparece repetidas vezes em "Bangalô" e dá uma idéia do que é esse novo romance de Marcelo Mirisola: uma viagem ao fim da noite, um mergulho no "paraíso mentido" da sociedade do espetáculo, em que a psicopatologia da vida cotidiana leva ao sufocamento e em que os desejos se transformam em aberrações.
Assim como em seus livros anteriores (os contos de "Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia" e "O Herói Devolvido" e o romance "O Azul do Filho Morto"), não há exatamente enredo em "Bangalô", mas uma recapitulação caótica das fantasias e traumas de um filho da classe média. E, assim como em seu romance de estréia, tampouco há personagens em sentido convencional, mas apenas um narrador com traços autobiográficos (um escritor que, a exemplo de Mirisola, vive enfurnado num apartamento em Florianópolis).
Todas as outras personagens são fantoches que realizam ou frustram suas fantasias sexuais e seus fetiches: Cris, a "ungida" (uma espécie de idealização feminina que sobrevive pela força de sua ausência), Thaís (que sempre se apresenta como "arquiteta & lésbica"), Cleópatra (a prostituta suicida que ele conhece num disque-puta), as gêmeas Joana e Janaina (protagonistas de uma orgia) e Sol, que sodomiza o narrador com um "pintorário" (uma espécie de vibrador).
O sexo e as drogas, que fazem do narrador um onanista compulsivo e delirante, são uma espécie de tábua de salvação. Da mesma forma, seu humor corrosivo parece ser a saída de emergência para uma geração que cresceu bombardeada pelo discurso ufanista, mas que percebeu que o brilho da burguesia ascendente vinha, na verdade, da sucata da indústria cultural (na qual essa burguesia agoniza hoje).
"Queria ver só as recordações de um Marcel Proust se, no lugar das madeleines, tivesse que encarar um "Almoço com as Estrelas" e suas respectivas maioneses e mandiopans em 1973", escreve Marcelo Mirisola, dentro de um estilo que oscila infernalmente entre o erudito e o kitsch, o sublime e o escracho.
Tudo isso já estava presente em seus livros anteriores, mas "Bangalô" torna mais explícita e consistente uma poética que boa parte da crítica considerava (a meu ver equivocadamente) como cacoete estilístico de um escritor às voltas com suas obsessões.
Em Mirisola, não há possibilidade de um mundo exterior àquilo que é descrito. Em "Bangalô", ele ridiculariza os "cafetões da qualidade de vida" e os corretores dos "paraísos obrigatórios", enfim, todo esse imaginário de pessoas que, quanto mais se refugiam no universo idílico do consumo e da mídia, mais são tomadas pelo pânico.
O narrador -que fica remoendo seu rancores num bangalô tropical, diante de barquinhos de bossa nova que cruzam o horizonte- talvez encontrasse a salvação nesse "breviário do desfazimento", na literatura como negação e superação de um destino adverso.
Mas o horror de Mirisola não poupa nem a si mesmo. "Bangalô" é uma fábula de escárnio e escatologia, mas também um itinerário de autoflagelação. Por isso, o narrador se deixa penetrar por Sol, transformando-se em um "semideus enrabado", humilhado e perplexo.
A própria escrita de Mirisola, esse fraseado intenso e sincopado, torna indissociáveis suas epifanias de suas escatologias: "Aqui, atrás das mortalhas, depois de ter desbastado a paisagem (eu mesmo o câncer) não tenho mais o que consumir: perdi as chuvas e o horário dos barquinhos e, para adivinhá-los novamente, é preciso obrigar-me com a cegueira e com as ruínas que inventei. Sei que fui enganado", escreve ele no quarto capítulo de "Bangalô", em que o diálogo com o espectro da filha abortada se transforma numa sequência que está entre as páginas mais dolorosas da prosa brasileira contemporânea.
Mas nem a dor é um ponto de fuga. No universo de Mirisola, todos caminham euforicamente para o suicídio, apostando que "o prolongamento de qualquer morticínio é a esperança da paz". Nesse sentido, "Bangalô" é um exemplo raro de felicidade niilista.


Bangalô    
Autor: Marcelo Mirisola
Editora: 34
Quanto: R$ 19 (128 págs.)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Livro/lançamento: Danuza Leão volta na era das celebridades
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.