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CONTARDO CALLIGARIS
A história da gente
O ideal da modernidade é a esperança de que "as pessoas" sejam sempre, de certa forma, "a gente"
EM SÃO Paulo, "People - Histórias de Nova York", de Danny
Leiner, estreou na semana
passada, num cinema só (Gemini).
Num site, encontrei a seguinte crítica do filme: "Com referências ao
incidente de 2001 ou não, "People" é
bastante chato, alternando entre
cinco histórias triviais centradas em
personagens medíocres e sem nenhuma qualidade. Difícil dizer porque alguém assistiria a um filme sobre pessoas comuns e chatas". Só para explicar: o "incidente de 2001" é o
ataque terrorista de 11 de setembro.
Essa crítica me deu vontade de assistir ao filme, pois tenho um carinho especial por enredos "plurais",
em que várias histórias se cruzam
ou, simplesmente, coexistem. Tenho mais carinho ainda pela vida de
pessoas triviais e "chatas".
E não é só isso. Obviamente, os
eventos que são e serão mencionados nos livros de história transformam nossa vida concreta. Há os
efeitos diretos de todo tipo de bomba na porta de casa e há as ações de
quem se engaja. Mas, sobretudo, há
caminhos discretos e ocultos pelos
quais o espírito dos tempos e os
"grandes" acontecimentos afetam o
cotidiano mais íntimo de todos nós.
Por isso, aliás, tenho uma paixão
antiga pela trilogia "USA", de John
Dos Passos (traduzida pela Rocco
em três volumes, "Paralelo 42",
"1919" e "O Grande Capital"). A pluralidade dos personagens, o uso, no
texto, de manchetes de jornal, propagandas, letras de músicas populares etc. me parecem escrever uma
história coral e complexa, na qual
me reconheço, embora seja de outra
época e de outro lugar.
O herdeiro de Dos Passos, na literatura americana de hoje, é Don DeLillo. Ao ler "Submundo" (Companhia das Letras), vivi uma emoção
parecida com a que me foi proporcionada pelos volumes de "USA": o
sentimento de uma relação, silenciosa, mas ativa, entre as nossas histórias e a História.
DeLillo, justamente, acaba de publicar "Homem em Queda" (mesma
editora), romance situado em Nova
York no próprio dia 11 de setembro
de 2001 e nos primeiros anos após o
ataque (para um dos personagens,
um terrorista, no ano anterior).
"Homem em Queda" é muito mais
forte e tocante do que o filme "People", mas as duas obras têm isto em
comum: são narrativas plurais, com
o mesmo momento histórico como
tema e pano de fundo. Nelas, os efeitos do ataque nas vidas dos personagens são vistos de maneira diferente. Em "People", aparentemente,
nada ou pouco mudou -há até uma
crítica feroz da teimosia terapêutica,
que quer encontrar traumas para
explicar condutas e "aliviar" sofrimentos. Ao passo que, em "Homem
em Queda", uma ferida aberta transforma a vida de todos ou quase. Mas
o que importa é o que segue.
Quando aprendi o português, nos
anos 80, fui seduzido por várias propriedades exclusivas da língua lusitana. Uma delas era a expressão "a
gente". Nas outras línguas latinas,
para designar uma coletividade na
qual quem fala está incluído, é preciso usar o "nós" da primeira pessoa
do plural (que indica um sujeito coletivo constituído) ou, então, recorrer ao impessoal (que, ao contrário,
não inclui necessariamente quem
fala). Em português, se digo "a gente" em vez de "as pessoas", isso implica que faço parte do sujeito, mas
sem que exista propriamente um
"nós" sólido e definido.
A distância entre "as pessoas" e "a
gente" pode ser pequena, mas percorrê-la é um gesto civilizador: os
ideais da modernidade ocidental repousam sobre a esperança de que
"as pessoas" sejam sempre, de alguma forma, "a gente".
Ora, as melhores ficções, sobretudo as plurais, como o novo livro de
DeLillo, produzem este milagre:
transformam "as pessoas" em "a
gente", e isso sem nos distribuir carteirinhas, sem nos cooptar num sujeito coletivo.
A ética moderna, dos "Principia
Ethica" de G. E. Moore (1903) à
"Teoria da Justiça" de John Rawls
(Martins Fontes), esbarra sempre
na pergunta seguinte: qual é o traço
comum que, embora sejamos indivíduos livres, diferentes e soltos de
tradições compartilhadas, leva-nos
(mais freqüentemente do que possa
parecer) a escolher o mesmo bem,
na concórdia?
Outra pergunta (ou talvez outra
formulação da mesma): qual é a parcela comum de humanidade que nos
torna capazes de reconhecer que a
vida dos outros tem sempre algo a
ver com a nossa?
Na espera de uma resposta, as ficções continuam nos ajudando a
transformar a História (com maiúscula) e as histórias dos outros em
história da gente.
ccalligari@uol.com.br
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