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NINA HORTA
O dia em que o frango virou faisão
Cada coisa que o imperador comia no caminho era riscada de nossa possibilidade
TEM UM livro, "Chame o Chef",
que conta os desastres dos cozinheiros vida afora e o que
fazem para remediar a situação. Isso
nos fez pensar nas muitas quase
catástrofes pelas quais passamos e
que, é claro, nunca revelamos. Mas
esta, apesar de mortal, vale a pena
ser lida pela multidão de jovens
que agora resolveram ser cozinheiros pelo glamour da coisa nem
sempre tão glamourosa.
Tudo começou quando fomos
convidadas pelo Palácio a fazer o
jantar do imperador japonês que
chegava de visita. Essas coisas são
complicadas, envolvem muito protocolo. As promotoras enlouquecem com o vai-e-vem de informações, e um friozinho na barriga se
instala, pensando nas péssimas
acomodações de cozinha, nas tensões, reviravoltas, nos pedidos,
quem é vegetariano, quem só come
peixe, quem não come feijão nem
frutas tropicais.
Para terem uma idéia, a própria
promotora, escolada, uma das melhores de São Paulo, começou a ter
sonhos estranhos que nem Freud
explicava. Um deles: para agradar à
imperatriz, subia numa das jaboticabeiras da fazenda Pinhal e, de lá,
lançava os frutos maiores para a figura imperial apanhar, levantando
a saia desenrolada do quimono.
Para nós, nada de muito especial.
Fizemos um cardápio brasileiro
bem caprichado e ficamos esperando. O imperador começou a visita ao Brasil lá pelo Acre. Cada coisa que comia no caminho era riscada de nossa possibilidade, como se
um imperador só pudesse comer
certa coisa uma vez na vida. Mas
entende-se. (Uma eminente figura
inglesa esteve aqui e disse ela que
lhe deram tanto guaraná a ponto
de ficar barriguda.) Comeu galinha, corta a galinha! Comeu porco,
corta o porco! Comeu sardinha,
corta a sardinha! Vai comer carne
na USP! Corta a carne! E o imperador comia o que podia, e nossa lista
minguava até não existir absolutamente nada vivo a ser morto e assado em homenagem a ele. Daí, o
baixo clero (como chamamos toda
a entourage que pajeia exageradamente um hóspede desses e que
causa dores de cabeça inúteis a todos os hospedeiros) se lembrou de
faisão.
Isso já faz muito tempo, e não era
fácil arranjar faisões na praça. Até
que, na véspera do jantar, um maravilhoso fornecedor disse que tinha centenas de belos faisões e que
já ia entregar. Djá!! Chegou, encostou o caminhão e começou a jogar
os bichos sobre a mesa. Congelados como pedras do mesolítico,
plam, plam, batiam na madeira ribombando sua velhice.
Transtornadas, minha sócia e eu
fizemos um deles com todo o capricho devido ao imperador. Suquinhos, ervas, fogo lento, fogo rápido,
carinho, boa panela. O gosto era de
pano de prato molhado. E não dava
tempo para mais nada...
Hoje, depois de tanto tempo, podemos revelar um segredo (ou
não?). O que foi para a mesa real?
Frango regado com caldo de faisão,
(um minicaldinho, diríamos).
Frango enfeitado como faisão, recheado como faisão, com o nome
de faisão, acompanhado com o vinho próprio para faisão, guarnições de faisão, que soube a todos
como faisão dos bons.
Sem contar as rezas aos santos
das causas impossíveis. E muito arroz. Caprichamos em arrozes nossos e japoneses. Imaginamos que o
imperador esqueceria de tudo ao
dar com montanhas de arroz para
escolher, de todos os formatos e
paladares.
Foi elogiado o jantar, muito elogiado. Ninguém jamais comera
uma ave tão saborosa, tão bem recheada com frutas do Brasil. A receita, a receita, meu reino pela receita de faisão. Nunca demos, é claro, segredo de Estado. E aqui, entre
nós, ficou apelidada de Carmen
Miranda ou Madame Satã, já não
me lembro. Mas fez história.
Essa foi a primeira. Houve muitas outras logo depois.
ninahorta@uol.com.br
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