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Longhi descobre fatos nas formas
Ginzburg vê no livro uma mistura de morfologia com história, que revela detalhes biográficos de Piero a partir das obras
Leia abaixo a continuação da
entrevista com Carlo Ginzburg.
FOLHA - Longhi consegue dar um
equivalente verbal à grandeza das
obras de Piero?
GINZBURG - É uma linguagem
muito difícil a que ele usava,
cheia de imagens, com palavras
arcaicas e pinceladas bizarras.
O fim a que se propunha era
mesmo o de dar um equivalente verbal da obra de arte. Ele é a
combinação de um filólogo
com historiador, que conhece
muito bem, sobretudo, as fontes primárias, os testemunhos
figurativos e também as fontes
secundárias, as biografias, os
catálogos. Ele apresenta propostas de pesquisa muito novas, numa linguagem muito
inusitada. Era um estudioso
muito autônomo e pouquíssimo acadêmico. Tinha uma escrita, um estilo único.
FOLHA - Isso não apresentaria problemas aos tradutores?
GINZBURG - Há elementos intraduzíveis. Não que seja impossível traduzi-lo. Se traduziram Joyce, também podem traduzir Longhi, mas não é comum que a obra de um estudioso apresente tantos problemas
aos tradutores e, claro, aos leitores. Mas ele tem um elemento magnético, que prende o leitor. Acho que neste livro, mesmo traduzido, será possível
perceber esse magnetismo que
vai além do estilo, que está a
serviço da argumentação.
FOLHA - Você se identifica com a
metodologia de Longhi? Acha que
seguiu preceitos da microhistória?
GINZBURG - Não posso dizer
que vejo neste trabalho algum
eco da microhistória, mas minha relação com Longhi tem
outra característica. O que me
interessa no texto de Longhi é a
relação entre a morfologia e a
história. Longhi analisa as formas, o aspecto formal de Piero
della Francesca ou de qualquer
outro pintor e, a partir dessa
leitura muito aprofundada e intuitiva dessas obras, consegue
estabelecer nexos, conexões,
que são morfológicas, ou seja,
que nascem da análise do traço
e da feitura das obras.
FOLHA - Os afrescos em si escondiam mais pistas do que os documentos e provas da época?
GINZBURG - Essa é a grande problemática e, aqui, acho que
Longhi é de uma riqueza extraordinária porque, em certos
casos, são as descobertas formais que antecipam as descobertas documentais. É a relação entre morfologia e história,
entre aquilo que nos diz o estilo
e o que nos diz a pesquisa sobre
a iconografia, o contexto. Essa
relação é proposta por Longhi
de maneira muito original.
FOLHA - Como você vê a herança
de Longhi?
GINZBURG - Ele foi um historiador da arte que esteve entre os
mais importantes do século 20
e repensou a tradição pictórica
da arte italiana, mas não o considero um colega, um companheiro de estrada. Ele foi, é claro, um grande professor, mas
não no sentido banal do termo.
Eu o vejo como um desafio, não
como um inimigo. E nessa tentativa dele de repensar a história da arte italiana, Piero della
Francesca tem uma importância capital. Nós nunca escrevemos sobre os mesmos assuntos,
com exceção de Piero, que é
uma grandíssima exceção.
FOLHA - Você não é um historiador
da arte, mas se dedica bastante ao
assunto. Como surgiu seu interesse
pela obra de Piero?
GINZBURG - Comecei a visitar
Arezzo quando jovem, há mais
de 50 anos. Lembro a impressão que me fez a "Flagelação"
de Piero restaurada, numa
mostra em Roma, em 1955. Vi
esse quadro e nunca mais o esqueci. Digamos que minhas incursões no campo da história
da arte se ligam, sobretudo, a
Piero della Francesca.
FOLHA - Você concorda com a leitura de Piero intermediada por Cézanne, principal tese de Longhi?
GINZBURG - Não gostaria de exagerar a contraposição entre a
síntese de forma e cor, de Piero,
e o desenho seco, estruturado
de Florença que Longhi condenava, mas é uma idéia reveladora. Faz vir à tona a hostilidade
que ele sentia em relação à
idéia tradicional, florentino-cêntrica da história da arte, e
mostra como ele foi um historiador idiossincrático, anômalo
e extraordinário.
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