São Paulo, sábado, 08 de dezembro de 2007

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Longhi descobre fatos nas formas

Ginzburg vê no livro uma mistura de morfologia com história, que revela detalhes biográficos de Piero a partir das obras

Leia abaixo a continuação da entrevista com Carlo Ginzburg.

 

FOLHA - Longhi consegue dar um equivalente verbal à grandeza das obras de Piero?
GINZBURG -
É uma linguagem muito difícil a que ele usava, cheia de imagens, com palavras arcaicas e pinceladas bizarras. O fim a que se propunha era mesmo o de dar um equivalente verbal da obra de arte. Ele é a combinação de um filólogo com historiador, que conhece muito bem, sobretudo, as fontes primárias, os testemunhos figurativos e também as fontes secundárias, as biografias, os catálogos. Ele apresenta propostas de pesquisa muito novas, numa linguagem muito inusitada. Era um estudioso muito autônomo e pouquíssimo acadêmico. Tinha uma escrita, um estilo único.

FOLHA - Isso não apresentaria problemas aos tradutores?
GINZBURG -
Há elementos intraduzíveis. Não que seja impossível traduzi-lo. Se traduziram Joyce, também podem traduzir Longhi, mas não é comum que a obra de um estudioso apresente tantos problemas aos tradutores e, claro, aos leitores. Mas ele tem um elemento magnético, que prende o leitor. Acho que neste livro, mesmo traduzido, será possível perceber esse magnetismo que vai além do estilo, que está a serviço da argumentação.

FOLHA - Você se identifica com a metodologia de Longhi? Acha que seguiu preceitos da microhistória?
GINZBURG -
Não posso dizer que vejo neste trabalho algum eco da microhistória, mas minha relação com Longhi tem outra característica. O que me interessa no texto de Longhi é a relação entre a morfologia e a história. Longhi analisa as formas, o aspecto formal de Piero della Francesca ou de qualquer outro pintor e, a partir dessa leitura muito aprofundada e intuitiva dessas obras, consegue estabelecer nexos, conexões, que são morfológicas, ou seja, que nascem da análise do traço e da feitura das obras.

FOLHA - Os afrescos em si escondiam mais pistas do que os documentos e provas da época?
GINZBURG -
Essa é a grande problemática e, aqui, acho que Longhi é de uma riqueza extraordinária porque, em certos casos, são as descobertas formais que antecipam as descobertas documentais. É a relação entre morfologia e história, entre aquilo que nos diz o estilo e o que nos diz a pesquisa sobre a iconografia, o contexto. Essa relação é proposta por Longhi de maneira muito original.

FOLHA - Como você vê a herança de Longhi?
GINZBURG -
Ele foi um historiador da arte que esteve entre os mais importantes do século 20 e repensou a tradição pictórica da arte italiana, mas não o considero um colega, um companheiro de estrada. Ele foi, é claro, um grande professor, mas não no sentido banal do termo. Eu o vejo como um desafio, não como um inimigo. E nessa tentativa dele de repensar a história da arte italiana, Piero della Francesca tem uma importância capital. Nós nunca escrevemos sobre os mesmos assuntos, com exceção de Piero, que é uma grandíssima exceção.

FOLHA - Você não é um historiador da arte, mas se dedica bastante ao assunto. Como surgiu seu interesse pela obra de Piero?
GINZBURG -
Comecei a visitar Arezzo quando jovem, há mais de 50 anos. Lembro a impressão que me fez a "Flagelação" de Piero restaurada, numa mostra em Roma, em 1955. Vi esse quadro e nunca mais o esqueci. Digamos que minhas incursões no campo da história da arte se ligam, sobretudo, a Piero della Francesca.

FOLHA - Você concorda com a leitura de Piero intermediada por Cézanne, principal tese de Longhi?
GINZBURG -
Não gostaria de exagerar a contraposição entre a síntese de forma e cor, de Piero, e o desenho seco, estruturado de Florença que Longhi condenava, mas é uma idéia reveladora. Faz vir à tona a hostilidade que ele sentia em relação à idéia tradicional, florentino-cêntrica da história da arte, e mostra como ele foi um historiador idiossincrático, anômalo e extraordinário.


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